segunda-feira, 2 de março de 2009

Sobre o Paradoxo de Epicuro

Paradoxos são declarações ou sentenças aparentemente verdadeiras mas que, quando analisadas, apresentam alguma contradição lógica.

O filósofo do período helenístico Epicuro de Samos (341 a.C. - 270 a.C) propôs um suposto paradoxo sobre Deus, seus atributos e a maldade que podemos observar em nosso mundo.

Epicuro disse:

Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que, do mesmo modo é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede? (Fonte)


A Epicuro e seu pensamento eu dou meu respeito e admiração, afinal, Epicuro assim refletiu honestamente. Não é nenhum erro pensar. Mas, o que dizer daqueles que sustentam a crença na ausência de Deus, baseando-se no Paradoxo de Epicuro?

A estas pessoas que sustentam seu ateísmo sobre o Paradoxo de Epicuro e a aquelas que usam este paradoxo como “prova” de que a fé em Deus é paradoxal - e que, portanto, deve-se ser ateísta – este texto foi escrito. O objetivo é mostrar que aqueles que pensam desta forma estão equivocados.

Para começar, percebi um aspecto interessante na citação acima: o paradoxo de Epicuro, na verdade, é um questionamento, não uma afirmação. A conclusão que Epicuro chegou foi, na verdade, a dúvida: “Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede?”.

Outro aspecto interessante é que Epicuro nada disse sobre a existência ou inexistência de Deus (ou deuses, divindades), nem em sua obra (a não ser que tenha escrito e se perdido), muito menos na descrição do paradoxo acima. Epicuro disse, sim, que não devemos temer os deuses. Mas não porque eles não existem, de acordo com Epicuro, e sim porque eles permanecem no Olimpo, inatingíveis e sem intervir nos assuntos humanos. (Fonte)

Feitas as considerações iniciais, vamos analisar o paradoxo de Epicuro.


1 -Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode...

Sim. Isso é um tanto óbvio.


2 – ... Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus.

Neste texto, o autor disse que esta conclusão é “extremamente lógica”.

Eu discordo. Vejamos: eu estou no computador agora. Por estar aqui, eu não posso estar na sala assistindo TV. Mas, por causa de minha escolha, eu sou impotente na capacidade de assistir televisão?

Claro que não. Apenas tive que preterir algo (assistir TV) ao escolher algo (escrever um texto). Mas a preterição de X não implica que eu sou impotente em relação a X.

Um questionamento que pode surgir aqui é "mas Deus é diferente de nós, o exemplo comparativo não serve". Sim, talvez. Porém, o objetivo aqui foi mostrar que o conceito de impotência está incorretamente aplicado, e para isso o exemplo se aplica, penso.

Outro exemplo: um homem está no escritório e bate aquela vontade de fazer sexo. Ele só vai encontrar sua esposa de noite em casa, mas tem a opção de saciar sua vontade com uma secretária que está dando mole para ele há muito tempo. O homem quer sexo, mas não pode (porque não quer) trair sua esposa. Neste caso, o homem é impotente sexual porque não pode realizar seu desejo (sexo) na hora que ele quer?


3 - ... Se pode e não quer, é invejoso, o que, do mesmo modo é contrário a Deus.

Novamente discordo. Vamos pegar o exemplo de um pai e um filho. O pai ama o filho e não quer vê-lo sofrer de forma nenhuma. Mas o filho, ao chegar à pré-adolescência decide comprar um skate. O pai, sem dúvidas, pode impedir seu filho de comprar o skate e evitar que ele se machuque. Mas o pai, entretanto, permite o filho comprar o skate para não ser taxado de autoritário, ou mau pai. O pai, permitindo que o filho ande de skate e permitindo, portanto, que o filho se machuque, foi invejoso?

Se foi, quer dizer todos os pais ou são invejosos ou são autoritários?


4 – ... Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus.

Nada há a ser dito aqui, pois não argumentarei que Deus “não quer e nem pode” evitar o mal no mundo.


5 – ... Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males?

Voltando ao exemplo do pai e do filho sobre o skate, se o filho ralar o joelho no chão, a culpa desse mal será do pai que permitiu que o filho andasse de skate ou do filho que quis andar de skate?

Se você responder que a culpa foi do pai, penso que você acredita que o pai estaria impedindo um mal se tivesse proibido o filho de andar de skate. Mas, se o pai assim agisse, ele não estaria realizando outro mal ao aborrecer seu filho?

A questão que surge aqui é a da liberdade humana. Deus poderia ter criado homens sem liberdade e que realizariam apenas o bem ou poderia ter criado homens livres, com capacidade de escolher ou não fazer o bem. Porém, Deus não poderia criar homens que livremente sempre escolheriam o bem, pois, homens assim, não seriam livres para escolher o mal, logo não seriam livres de fato.

Talvez se Deus quisesse que nós obrigatoriamente O seguíssemos, ele nos criaria como robôs. Mas, nos garantido a liberdade de buscá-lo se quiséssemos, Deus nos garantiu também a possibilidade de não buscá-lo se não quisermos.

Respondendo a Epicuro, o mal provém do mal uso de nossa liberdade. O mal não é uma entidade com existência ontológica. O mal é uma necessidade metafísica para a existência do bem, como um vale necessariamente existe se houver uma montanha. Ao decidir criar homens livres que possam livremente fazer o bem, Deus aceitou o risco de que esses homens livremente poderiam não fazer o bem. Aí está o "mal".

Acidentes no trânsito em grande parte são causados por irresponsabilidade no volante: alta velocidade, álcool, imprudência, etc. Assassinatos, tiroteios, roubos, estupros, seqüestros... todos esses males são causados por mau uso de nossa capacidade de escolha.

Mas e os fenômenos naturais como terremotos, enchentes e tsunamis?

Não me surpreenderia de ver um estudo - já vi vários ensaios, mas nenhum artigo conclusivo - apontando que o mal cuidado que temos com nosso planeta é que tem causado estes fenômenos. O que não é difícil de aceitar, em tempos de notícias alarmantes acerca de nossa responsabilidade quanto ao aquecimento global.

Alguns ainda temam e dizem que Deus é o responsável por todos esses males. A eles pergunto: o inventor do futebol deve ser responsabilizado pelas brigas de torcidas organizadas no Brasil? Ou o inventor do automóvel deve ser responsabilizado pelos seqüestros e pelos transportes de drogas feitos diariamente por veículos?


6 - ... Por que razão é que não os impede?

Impedir a possibilidade de existir o mal resulta em impedir a possibilidade de escolher o bem dentre duas opções. Impedir o mal resulta em impedir-nos de sermos livres.

Acho que ninguém gostaria disso.

Se você acha que perder a liberdade é um preço razoável a ser pago para que o mal acabe, pergunto-lhe: você estaria disposto a abandonar sua liberdade de ir e vir (ser preso) se isso resultasse na melhoria de vida de uma criança africana?

Acho que não.

Porém, livre você pode ajudar. Você pode fazer o bem sendo livre.

A mesma liberdade que Deus nos deu que pode gerar o mal se fizermos más escolhas, pode gerar o bem se escolhermos bem, foi para isso que fomos criados, para escolher livremente o bem. Portanto, se há alguém culpado pela entrada do mal no mundo, somos nós, que fazemos escolhas visando nossos desejos e prazeres, pouco nos importamos com as conseqüências.


Conclusão


Como já disse neste texto, tenho respeito por Epicuro pelo pensador que foi e pretendo em breve (por honestidade intelectual) ler os remanescentes pensamentos dele que estão disponíveis a nós.

Epicuro concluiu seu paradoxo com duas questões, não com duas afirmações. Estas duas questões eu busquei responder aqui neste texto conforme minha visão.

Para mim nem sempre “não poder fazer algo” implica impotência e nem sempre “não querer fazer algo” implica inveja. Há casos e casos.

Tratar o paradoxo de Epicuro como uma conclusão de que a fé na existência de Deus é incoerente é interpretar, penso eu, de forma equívoca Epicuro. Não poucos ateus agem assim.

Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

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DESCONSTRUINDO por Eliel Vieira está licenciado sob Creative Commons Attribution.


8 comentários:

wesley 3 de Março de 2009 04:35  

( “... Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus.”

Neste texto, o autor disse que esta conclusão é “extremamente lógica”.

Eu discordo. Vejamos: eu estou no computador agora. Por estar aqui, eu não posso estar na sala assistindo TV. Mas, por causa de minha escolha, eu sou impotente na capacidade de assistir televisão?)

Eliel

Sua argumentação foi interessante.... Mas ela esbarra numa compreensão incorreta da ONIPOTÊNCIA Divina, frente ao exemplo dado por você quanto a IMPOTÊNCIA Humana....

Realmente a nós humanos (dado uma escolha qualquer realizada....) não poderíamos estar ao mesmo tempo no computador e assistindo televisão....

Mas o exemplo não se aplicaria a uma divindade ONIPOTENTE....
Ela (caso existisse....) deverá ter condições de executar as duas tarefas simultaneamente, sob risco de não ser mais ONIPOTENTE....e nem ONIPRESENTE....

Ou seja: Deus (ONIPOTENTE que é....) deverá assistir televisão e estar em frente ao computador ao mesmo tempo e simultaneamente? Sim deverá.... Ele também seria ONIPRESENTE....



Ou Deus seria ONIPOTENTE podendo realmente realizar todos as coisas, (inclusive impedindo os males no mundo...) mas não as faz, por qualquer motivo, e portanto não deseja...(não quer...) ou então, Ele não pode....
E se não pode, não é de fato ONIPOTENTE...
Argumentar que Uma divindade abriria mão da ONIPOTÊNCIA quando faz uma escolha qualquer, seria o mesmo que afirmar que Ela (a divindade...) se auto limitaria na escolha que faz, e portanto não PODERIA MAIS REALIZAR TODAS as coisas...

Se eu faço uma escolha, e com base nela me limito, já não posso mais realizar todas as coisas... e portanto não sou mais ONIPOTENTE.....

Se a escolha de Deus o limita, ele não é ONIPOTENTE........

Simples, assim......

Eliel 3 de Março de 2009 06:15  

Mas Wesley, eu não disse que Deus NÃO PODE acabar com o mal, no sentido de "potência". Poder ele pode, da mesma forma que o pai pode impedir o filho de andar de skate se ele quiser.

Deus "não pode" é nos forçar a aceitar livremente o bem ("pode" aqui não no sentido de potência e sim no sentido de "possibilidade"), pois isso seria uma contradição lógica. Da mesma forma que Deus "não pode" criar um triângulo redondo.

Deus pode nos deixar livre ou pode nos forçar a escolher o bem. São, digamos, as únicas opções disponíveis. Sua onipotência reside no fato dele ter podido escolher qual "tipo" de homem ele criaria.

Percebi também que nosso alfabeto não consegue comportar em suas palavras o sentido correto de "onipotência" dado às limitações do verbo "poder".

Se "Onipotência" for interpretado como "capacidade de fazer tudo quanto é logicamente possível", as argumentações que fazem jogo com o verbo "poder" serão anuladas.

De qualquer forma, obrigado pelo comentário.

Daniel Grubba 3 de Março de 2009 10:57  

OLa Eliel,
A julgar pelos livros recomendados, percebo que temos bastantes coisas em comum. Com certeza irei acompanhar seu blog. Espero aprender bastante por aqui.

Abraços,
Daniel

Glauber Ataide 3 de Março de 2009 15:41  

Olá Eliel, mais um belo texto.

"Eu discordo. Vejamos: eu estou no computador agora. Por estar aqui, eu não posso estar na sala assistindo TV. Mas, por causa de minha escolha, eu sou impotente na capacidade de assistir televisão?"

Acho que o ponto de Epicuro não é bem esse. No exemplo dele, a vontade de Deus já está direcionada para evitar o mal, mas algo o impede de cumprir sua vontade, e por isso Ele seria impotente.

Eu concordo com o seu argumento de que a possibilidade de não realizar o mal nos privaria de nossa livre arbítrio. No entanto, nem todo mal pode ser atribuído a causas humanas. Há muito mal no mundo cuja ocorrência parece ser completamente desnecessária.

Isso é, a questão não seria o mal em si, mas o tipo, a qualidade de algumas manifestações do mal.

Sobre isso, é interessante o argumento utilizado por Ivan, personagem ateu da magnífica obra "Os irmãos Karamazovi", de Dostoiévski. Ao travar um diálogo com seu irmão mais novo (um monge), Ivan argumenta que certas ocorrências do mal são aparentemente desnecessárias, e cita um exemplo que ele presenciou: uma menina que morreu de afogamento mas que, antes disso, ficou presa nas correntezas de tal forma e por tal tempo que aquele sofrimento, da forma como aconteceu, não parecia ter propósito algum.

Obviamente tanto Dostoiévki quanto nós sabemos que o sofrimento pode ser justificado a partir de uma perspectiva da eternidade, pois não sabemos todos os desígnios de Deus. Mas o argumento é justamente esse: há certas formas de mal que parecem ser totalmente descabidas de propósito, e não é difícil encontrar exemplos disso.

Por isso os ateus hoje afirmam NÃO que Deus NÃO exista, mas que é POUCO PROVÁVEL que Ele exista. Não é a questão do mal em si, mas é o tipo, a qualidade de algumas de suas manifestações que parecem indicar que Deus não existe (ou não se preocupa, ou não quer, ou não pode evitar o mal).

Roberto Vargas Jr. 4 de Março de 2009 18:04  

Caro Eliel,
Certamente essa questão passa pelo livre-arbítrio, como você notou e também no significado de onipotência. A discussão é interessante.
Mas meu comentário é mais sobre sua definição de paradoxo: "Paradoxos são declarações ou sentenças aparentemente verdadeiras mas que, quando analisadas, apresentam alguma contradição lógica".
Prefiro inverter isso e dizer: "Paradoxos são declarações ou sentenças que aparentemente apresentam alguma contradição lógica, mas são verdadeiras".
Para exemplificar isso menciono o problema da onisciência de Deus e o livre-arbítrio humano. São aparentes contradições, mas são ambos verdades.
Em Cristo,
Roberto

Alexandre Vieira Kuhn 6 de Março de 2009 17:47  

Ainda não tive tempo de ler sua contra-argumentação com a devida atenção mas, assim que o tiver, me comprometo, desde já, a trabalhar em uma tréplica, a qual postarei em meu blog e publicarei ao senhor.

Fico realmente muito feliz em saber que existem pessoas buscando um conhecimento sério, longe das futilidades que tomam conta da maior parte dos seres humanos...

Grande Abraço!

Cesar 22 de Maio de 2009 10:37  

Acho que cometeste uma falácia do espantalho...

Por quê Deus teria que agir, ou por quê ele está sendo questionado acerca da existência do mal? Até onde eu sei, o paradoxo existe por que se afirma que Deus é bom. Ora, se Deus é bom, ele não pode ser mais ou menos bom, ou bom até certo ponto, ou pode? Será que Deus pode ser mau, ou ter algum traço de maldade, e ainda assim ser chamado de bom? Quer me parecer que não pode haver um único traço de maldade em Deus. Ele tem que ser então todo-bondoso.

Ora, se ele é todo-bondoso, então o mal não faz parte dele, e o que ele faz não pode gerar o mal, por que seria uma perversão da natureza divina. Mas o mal existe. Sem entrar no pantanal lógico da discussão do livre-arbítrio, podemos ver o mal quando acontecem desastres naturais, por exemplo, e pessoas são levadas a sofrer e morrer de maneiras cruéis e sem sentido algum. Isto não é bom. Ou é?

Bom, supondo que não seja bom, está provado que existe mal. Mas se Deus existe, e é todo-bondoso, por que o mal existe? É aí que eu penso que entra o paradoxo. Se Deus é bondoso, o mal não deveria existir. Se o mal existe, então ou Deus não é bondoso e é, portanto, ele mesmo a origem do mal, ou então ele é bondoso, mas não tem poder para impedir a existência do mal.

A conclusão é que se Deus existe e não é bondoso, então não é digno de ser adorado. Se Deus existe e não é capaz de impedir o mal, então ele também não é digno de ser adorado.

Como você pode ver, o argumento não fala nada sobre a existência de Deus, exceto que, se os cristãos, judeus, muçulmanos e outros que acreditam em deus ou deuses afirmam que o Deus deles é todo-poderoso e todo-bondoso, podemos afirmar que a existência do mal é a prova de que este Deus não existe.

E outros deuses? Bom, poderia existir um Deus como o de Einstein, um Deus que é distante e que não se importa com a criação de suas mãos, que não distribui prêmios e castigos para sua criação, e que não concedeu a imortalidade para ninguém. E um Deus assim, como é que se adora? Como Einstein fazia: desvendando os seus mistérios.

Getro 16 de Junho de 2009 11:23  

Eliel, sou seu fan. seus argumentos são sólidos e concisos. Quando vocÊ escrever um livro, quero ser o primeiro a comprá-lo.
abraçao!

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