Terça-feira, 16 de Junho de 2009

Sobre a Sexualidade de Deus

Calma, não se assuste! Este texto não pretende dizer que Deus possui relações ou anseios sexuais. Apesar de já ter ouvido dentre a turma dos “adoradores extravagantes” o absurdo de que o ato de “adoração íntima” é semelhante a um ato de intimidade sexual entre Deus e os homens, e de também ser verdade que, sob uma ótica psicanalítica, anseios sexuais reprimidos podem ser observados facilmente nos atos de adoração nas igrejas neo-pentecostais, este texto não vai se referir a este tipo de sexualidade “sexual”. O termo “sexualidade” aqui faz referência aos gêneros “masculino” e “feminino” e sua relação para com Deus.

Trata-se de uma questão que passa despercebida por praticamente todas as pessoas de fé. Sinceramente nunca li uma reflexão específica sobre esta questão (com exceção dos livros mencionados na Bibliografia, porém, não são obras específicas sobre a questão da sexualidade de Deus), a despeito disto, todos nós adoramos um Deus “masculino”. Quem nunca imaginou Deus semelhante a um velhinho com grossas sobrancelhas e barba branca?

Se Deus é Espírito (Jo 4:24) e, assim, não possui sexo nem gênero, por que razão atribuímos a ele uma imagem masculina?

Algumas respostas foram fornecidas pela psicologia. Sigmund Freud (aquele que tudo explica) disse que a imagem que nós temos de Deus trata-se de uma projeção da imagem que tínhamos de nosso pai na infância. Como todos devem saber, Freud era ateu e nunca negou isto, porém, a despeito de sua descrença, sua argumentação – se verdadeira – explica com perfeição porque a imagem que temos de Deus é paterna.

Mas, não vou me deter neste assunto, se você deseja conhecer mais sobre a argumentação de Sigmund Freud sobre as origens do pensamento religioso no ser humano, sugiro aos iniciantes que leiam este texto escrito pelo meu amigo Glauber Ataíde. A questão sobre a qual quero me debruçar aqui (além de outras que serão abordadas ao longo do texto) é mais abrangente: é totalmente proveitoso ao ser humano pensar em Deus como um ser paterno?

Antes de responder a esta questão, porém, preciso responder se pensar em Deus como "pai" é correto ou até que ponto é correto. A Bíblia claramente dá margens para pensemos em Deus desta forma, afinal, Deus é comparado a vários substantivos masculinos como Rei (Salmo 145:1), Senhor (Salmo 145:3), Pai (Mateus 6:9), Pastor (Salmo 23:1), entre vários outros.

É preciso deixar claro, contudo, que todas as passagens com referência à masculinidade em Deus são antropomorfismos, não declarações reais do que venha a ser Deus de fato. Antropomorfismo é uma maneira de criar analogias e metáforas usando como base características que nós, seres humanos, possuímos. Deus, por exemplo, não possui “olhos”, porém, para facilitar o entendimento de como vem a ser o cuidado de Deus para com o mundo, um escritor bíblico escreveu que os olhos dele estão sobre toda a Terra (Deuteronômio 11:12). Da mesma forma, Deus não possui mãos, nariz, boca, pés, ou qualquer parte física.

Talvez você não veja a necessidade de usar antropomorfismos ao falarmos de Deus, porém, de que outra forma poderíamos pensar sobre Ele senão através de analogias antropomórficas?

Pense: explicar porque uma maçã cai no chão é relativamente fácil (gravidade). Dizer qual é a velocidade em que ela chega ao chão já é um pouco mais complicado. Explicar qual é a origem das maçãs é mais difícil ainda. Identificar como a primeira árvore de maças surgiu no planeta é uma tarefa dificílima. Ter todas as respostas sobre como a Terra veio a existir é praticamente impossível. Explicar passo a passo como todo o Universo veio a surgir é totalmente impossível. Note que a cada vez que você aumenta o tamanho daquilo que se pretende explicar, mais complicado sua explicação se torna. Existindo Deus, sua explicação deverá ser a de maior grau de dificuldade, uma vez que Ele se encontra além do tempo, do espaço físico e da matéria. Você pode entender o mesmo princípio usando o exemplo da régua: contar quantos milímetros tem em um centímetro é muito fácil; contar quantos milímetros tem em uma régua de 30 cm (sem somar) é mais complicado; dizer quantos milímetros quadrados possui um livro é difícil; em um automóvel mais difícil ainda; em toda a terra é praticamente impossível. Porém, indo mais além, como dizer quantos milímetros possuem uma medida infinita?

Se entendemos Deus como um ser infinito, como nossas palavras podem ser capazes de expressá-lo de forma absolutamente verdadeira?

O uso de analogias antropomórficas é válido (talvez necessário) em vista da nossa incapacidade absoluta de entender Deus como Ele é. Quando um escritor bíblico diz que Deus é Rei, portanto, ele não está querendo dizer que a figura de “rei” representa Deus de forma absoluta, antes, ele quer dizer que em alguns aspectos específicos, a figura que conhecemos de “rei” é análoga a Deus.

Talvez com o exemplo a seguir você entenda o meu ponto de argumentação: observe a afirmação bíblica de que Deus é um Leão (Isaías 31:4 e outros). Ora, é óbvio que os escritores bíblicos que fizeram esta analogia (Deus x Leão) não estavam querendo dizer que Deus tinha juba, boca fedorenta e rabo. Com esta analogia eles estavam querendo na verdade enfatizar alguns aspectos que Deus e os leões possuem em comum: majestade, força e coragem, por exemplo.

Com a analogia de “Pai” a situação é semelhante. Deus não é pai. Quando a Bíblia diz que ele é pai, ela esta querendo dizer que em alguns aspectos Deus se assemelha a um pai, ou, que nossa relação para com Deus em alguns aspectos deve ser semelhante a relação que temos com nossos pais.

Minha argumentação para este texto é a seguinte: Deus nunca deve ser tratado absolutamente como um pai. Afinal, Deus não possui masculinidade, Ele é Espírito. Continua a ser verdadeiro que em alguns aspectos Deus é semelhante aos nossos pais, porém, a analogia da relação “Deus x Pai” deve se limitar a apenas aos aspectos em que eles são análogos, não a todos.

É por causa de más interpretações procedentes desta analogia “Deus x Pai” que doutrinas do “Deus castigador” surgiram ao longo da história da igreja. Inferir que Deus é castigador como um pai apenas porque em alguns aspectos de misericórdia ele é análogo aos pais é um erro grotesco. Da mesma forma não podemos dizer que Deus é um ser "masculino" porque Ele é chamado de "pai" e outros substantivos masculinos na Bíblia. Esta é uma das primeiras conclusões deste texto.

Vamos voltar à questão proposta para este texto: é totalmente proveitoso ao ser humano pensar em Deus como um ser paterno?

Proveitoso, sim. Totalmente proveitoso, não. Não devemos confiar toda nossa visão de Deus na analogia de que Deus é um ser paterno (masculino). Digo isto por algumas razões básicas:

1 – Os escritores bíblicos não tinham a intenção de condicionar todo o pensamento sobre Deus a esta analogia específica, antes, tinham a intenção de apenas focar algum aspecto específico análogo entre Deus e os pais (amor, misericórdia, cuidado e proteção).

2 – A imagem que temos sobre “pai” é muito relativa, afinal, cada pai é de um jeito e cada filho enxerga o pai de uma forma específica. Condicionar todo o pensamento sobre Deus à imagem de “Pai” faria Deus ser, em última análise, dependente daquilo que nossos pais são. Sendo Deus um ser que “é o que é” em si mesmo, condicionar todo o pensamento de Deus à analogia do “Pai” é um grave erro.

3 – Em algumas culturas a figura do pai é repugnante e, ao condicionar o pensamento sobre Deus à figura paterna, você estará afastando as pessoas de Deus, não as aproximando.

Um exemplo sobre este terceiro ponto é a cultura japonesa, onde a figura do pai é a pior possível para se comparar com Deus. Um velho ditado japonês diz que as quatro coisas mais horríveis do mundo são: incêndios, terremotos, relâmpagos e pais.

Philip Yancey aborda um pouco desta questão em seu livro Alma Sobrevivente (Mundo Cristão, 2004):

O terapeuta Erich Fromm diz que um filho de uma família equilibrada recebe dois tipos de amor. O da mãe tende a ser incondicional, aceitando a criança, independentemente do que ela faça ou de como se comporte. O amor do pai apresenta a tendência de ser mais voltado à provisão, mostrando aprovação quando a criança apresenta certos padrões de comportamento. [...] A conclusão de Endo é que, para que o cristianismo apresente algum apelo ao povo japonês, precisará enfatizar o amor materno de Deus, o amor que perdoa erros, cura feridas e atrai os outros para si, em vez de forçá-los a vir.


Amor “materno” de Deus? Isto não seria uma blasfêmia?

Claro que não! Deus é tão análogo ao “pai” quanto é à figura da “mãe”. O amor de Deus é tão análogo a um quanto a outro. Entende-se facilmente a razão da Bíblia não conter menções ao fato de Deus ser “mãe” quando se sabe as religiões pagãs existentes na época em que os textos foram escritos enfatizavam demais o “Divino Feminino”. Se Deus se revelasse como “mãe”, certamente o povo faria confusão e aceitariam as práticas das religiões pagãs.

Existe, porém, uma passagem muito interessante na Bíblia que nos dá margem a pensar em alguns aspectos de Deus em analogia com o amor “materno”. Veja:

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes! (Mateus 23:37)

Deus não é mãe. Mas em contra-partida também não é pai. Alguns aspectos do amor de Deus podem ser exemplificados pelo amor paterno, porém, da mesma forma, vários outros (talvez mais) aspectos podem ser exemplificados pelo amor materno.

Deus não é mais “pai” do que “mãe”, afinal, Ele não é nem pai nem mãe. Deus é Deus, e Deus não possui sexualidade.



Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org


Obras Consultadas:

MCGRATH, Alister. Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião. Loyola, 2005.
YANCEY, Philip. Alma Sobrevivente: sou cristão apesar da igreja. Mundo Cristão, 2004.

Creative Commons License
DESCONSTRUINDO por Eliel Vieira está licenciado sob Creative Commons Attribution.



3 Comentários:

João Paulo Fernandes disse...

Eliel, MARAVILHOSO esse texto.Acabei de postar no mei blog,na coluna " vamos pensar um pouco", se tiver algum problema tu me da o toque que eu retiro. Abraço e que Deus abençoe!

Glauber Ataide disse...

Recentemente algumas feministas tentaram resgatar a imagem da "Sophia", do Cristianismo Ortodoxo, como o lado feminino de Deus.

Mas o melhor caminho é realmente compreender a natureza da linguagem analógica.

Afinal, como afirmava Tomás de Aquino, só podemos conhecer a Deus de maneira incompleta, imperfeita e análoga.

Bruno Rogério disse...

Paz e Bem querido!
Gostei muito de sua abordagem sobre o gênero de nossa divindade. Temos no Brasil alguns teólogos/as que também fizeram suas análises teológicas a respeito deste tema. No entanto eles não circulam nos meios conservadores brasileiros. Deixo aqui um link de um texto do doutorando Cláudio Carvalhaes.
http://www.teologiabrasileira.com.br/Materia.asp?MateriaID=307
O título é - " Deus é nossa mãe?
O também teólogo católico Leonardo Boff em seu livro Trindade e Sociedade aborda esta temática;no site do instituto teológico franciscano tem uma revista chamada Ribla ( Revista de interpretaçao Bíblica Latino Americana)Lá vc encontrará um texto de uma teóloga sobre a "Sexualidade EM Javé". Este sim abordará o tema Sexualidade. Não sei qual volume mas tem. rsrsrs
Um abraço.
Ps: Só uma consideração apenas: O Título do texto deveria ser: Sobre o gênero de Deus. Sexualidade tem outra conotação.

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