segunda-feira, 27 de abril de 2009

Falsas Dicotomias Evangélicas

“Dicotomia” é um método de classificação que postula apenas duas opções de “escolha” para dado problema / questão.

Por exemplo, ou uma pessoa está viva, ou ela está morta. Não existe um ser semivivo, ou semimorto. Quando uma mãe está esperando um filho, ou será menino ou menina, não existe um 3º sexo distinto destes dois (apesar de que a criança pode nascer hermafrodita, mas são casos extremamente raros).

Os dois exemplos acima representam dicotomias, apenas duas hipóteses possíveis para dada questão.

“Falsas Dicotomias” são casos em que, para dada questão, postulam-se apenas duas opções (geralmente dois extremos), quando, na verdade existe uma ou mais opções que não foram consideradas.

Veja um exemplo: "Marcos está atrasado para o trabalho. Ou seu carro quebrou, ou dormiu demais. Ligamos para ele e não estava em casa, então seu carro deve ter quebrado."

No exemplo acima, uma dicotomia foi postulada para explicar a razão pela qual Marcos se atrasou para o trabalho. Porém, podemos observar claramente, que várias outras possíveis razões para o atraso de Marcos não foram consideradas: Marcos poderia estar agarrado no trânsito, ele poderia ter levado sua mãe para tomar uma injeção para gripe, ele pode ter sido seqüestrado, ele pode até estar morto. Enfim, existem inúmeras razões pelas quais Marcos possa ter se atrasado para o trabalho, mas, estabeleceu-se de forma equivocada uma dicotomia (ou seu carro quebrou ou ele dormiu demais).

A “Falsa Dicotomia” é uma non-sequitur, uma falácia lógica. Uma maneira equivocada de se obter a verdade sobre um problema qualquer. “Falsa Dicotomia” também é chamada de “Falso Dilema”, “Pensamento Preto e Branco”, ou “Falsa Bifurcação”.

-

Várias falsas dicotomias são pregadas na Igreja Evangélica (sim, generalizei, se a igreja onde você freqüenta não faz uso de falsas dicotomias, dê glória a Deus, pois isso é muito raro), todo final de semana praticamente eu escuto falsas dicotomias na igreja onde eu freqüento.

Ou você é de Deus, ou você é do Diabo
Ou o que você faz é obra de Deus, ou é obra de Satanás
Ou você anda no Espírito, ou está nas Trevas
Ou você da ‘boa noite’ para Deus, ou diz ‘boa noite’ para o Diabo
Ou a música louva a Deus, ou ela louva a Lúcifer
Ou você vive uma vida absolutamente sem pecado, ou você vai queimar no fogo do Inferno

Tenho comentado com minha namorada: evangélicos adoram falar sobre coisas “tenebrosas”. Termos como “Diabo”, “Satanás”, “trevas”, “obra demoníaca”, “Inferno”, “Condenação” e “batalha espiritual” são muito mais mencionados nos cultos do que “Graça”, “Arrependimento”, “Perdão” e “Amor ao Próximo”. São tantos termos que Jesus relevou – ou, se mencionou, mencionou poucas vezes e em contextos específicos – e que a Igreja adora citar e mencionar. Não fico um final de semana sem ouvir os termos “inferno”, “Diabo” ou “trevas”. As menções sobre “batalha espiritual” – endossado pelo sensacionalismo barato de escritores com parafusos a menos como Benny Hinn e Rebecca Brown – me irritam muito também.

E aí são pregadas as falsas dicotomias. Certa vez, em uma reunião de Domingo na igreja em que freqüento, a pessoa que dava o estudo sobre “Gálatas 5” disse algo como “o que não é obra do Espírito é obra da Carne. Não existe meio termo. Ou você está fazendo algo de Deus, ou você está fazendo algo das trevas”.

Neste exato momento, perguntei para minha namorada em seu ouvido: “e mascar chicletes, é obra satânica?”.

Permita-me trabalhar melhor este conceito aqui. É óbvio que mascar chicletes não é “Obra do Espírito”. Os chicletes não foram criados por Deus para o louvor da Sua Glória. Ninguém masca chicletes com o intuito de “adorar a Deus” ou com o objetivo de “propagar a mensagem do Evangelho”. Mascamos chicletes simplesmente porque gostamos. É docinho; se for de menta ele deixa o hálito refrescante; se estivermos apreensivos ou preocupados, mascar um chiclete ajuda a relaxar; enfim, existem n móvitos pelos quais gostamos de mascar chicletes, mas nunca ouvi alguém fazer qualquer menção a Deus como causa pela qual está mascando chicletes.

Existem, portanto, ações, atitudes ou atos que não são “Obras do Espírito”, mas que também não devem ser consideradas “obras da carne”. São ações simplesmente naturais do ser humano. Como meu amigo Glauber disse em um de seus brilhantes textos:

O nosso evangélico afirma que tudo o que fazemos deve ser feito "para a honra e glória de Deus". Assim, ele segue seu raciocínio e nos ataca: "Você vai honrar e glorificar o nome do Senhor em um bar ou danceteria? Você está indo lá para pregar o evangelho? Essa música que você está ouvindo louva o nome de Deus? Olha, pode até não ser errado, irmão, mas devemos evitar."

Bem, realmente não vamos a uma festa para honrar e louvar o nome de Deus, e é verdade que muitas músicas que ouvimos também não o fazem. Na verdade, muitas músicas não falam absolutamente nada sobre Deus. Nem contra e nem a favor. Mas será que tudo o que fazemos deve ser para honrar e louvar o nome de Deus? Será que tudo mesmo?

Então eu faço as seguintes perguntas: Alguém faz sexo pensando em Deus? Alguém em pleno ato sexual levanta as mãos pro céu e faz uma oração? Ainda uma outra pergunta: Alguém vai ao banheiro pensando em Deus? Alguém chega "diante do trono" (desculpem o trocadilho inevitável) e ora: "Deus, esta obra é para o Seu louvor"?

Sim, fui um pouco extremista em meus exemplos. Mas isso foi intencional, pois o que eu quero deixar claro é o seguinte: nem tudo o que fazemos, o fazemos para Deus. Há muitas coisas que fazemos simplesmente porque somos deste mundo, sim senhor(a). É impossível e desnecessário suprimir a nossa humanidade, da qual o próprio Jesus se revestiu.
(Fonte).


Ao escrever este presente texto, me veio à mente que o livro “Cânticos de Salomão” não tem objetivo algum de louvar a Deus, em nenhuma instância. O livro é uma carta de amor escrita por um homem à sua amada. Salomão usa até termos um tanto “calientes” ao se referir à sua amada, como referências às pernas e os seios dela. Apesar de a igreja interpretar os cânticos como uma alegoria ao fato de a Igreja ser a noiva de Cristo (interpretação que eu considero absolutamente equivocada), é impossível escapar do fato de que esta carta foi concebida por um homem com o objetivo de agradar à sua amada, não a Deus.

Perguntem a qualquer judeu – eles são uma autoridade muito maior para comentar sobre o Velho Testamento do que eu – e ele lhes dirá que os Cânticos de Salomão são poemas de amor, apenas.

O livro de Ester, também, não faz qualquer menção a Deus e todo o seu livro.

Até na Bíblia, portanto, nem tudo é feito para a glória de Deus.

Lembro que um professor de seminário, Marcos Cunha, hoje pastor da Igreja Batista do Tirol em Varginha, quando questionado sobre o “poder” ouvir músicas seculares, respondeu assim:

– Eu escuto sim. Adoro “14 bis”. Isso nunca atrapalhou minha fé. Imagina você indo para a lua de mel com sua esposa ouvindo “Castelo Forte é o nosso Deus...”?!

-

Existem atos, ações e atitudes que não fazemos visando louvar a Deus, mas que também não são “obras de satanás”. Existem ações que são naturais, humanas, próprias a nós, seres humanos. Se existem tal classificação de ações – as ações naturais – esta dicotomia pregada pelos evangélicos é falsa.

Sabendo que as boa parte das dicotomias são falsas (existem algumas dicotomias verdadeiras), ouvi-las todo final de semana, irrita muito e enche o saco.

Você – líder, pastor ou pregador – evite pregar por dicotomias, ou pense muito bem antes de usá-las. A mente do seu rebanho agradece.


Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

Creative Commons License
DESCONSTRUINDO por Eliel Vieira está licenciado sob Creative Commons Attribution.


3 comentários:

Caio Macedo 27 de Abril de 2009 08:55  

Pois é, o mais engraçado é que nessas igrejas tradicionalistas, quando se fala que você é frequentador de shows seculares, que relaxa ouvindo Elvis ou que assistiu um filme de susoense, todos te olham meio torto, apesar de eles mesmo fazerem algumas dessas coisas, mas não têm coragem de assumir.
Muito bom texto.

'Sola Scriptura' 27 de Abril de 2009 15:34  

Na minha opinião, o livro de Cantares é de uma riqueza inigualável e uma das maiores revelações de todos os tempos: o relacionamento da Igreja com seu Noivo. (http://www.apriscomaranata.com/mbr_36.html)

Desculpe, mas a natureza humana pecaminosa é que tornou o sexo criado por D'us para procriação sujo, impuro.

Alexandre 28 de Abril de 2009 09:29  

Boa tarde Eliel, Paz do Senhor!

Meu nome é Alexandre Silva dos Reis, sou membro da igreja batista no bairro Sotelândia, Cariacica-ES, e assim como você, preocupado com alguns "descuidos" de nossos pregadores, sem dúvida bem intencionados. Anteontem mesmo (domingo, 26/04/2009) estive pregando a noite na minha igreja e, ao preparar meu esboço, pensei nas "dualizações" simplistas que muitos de nossos líderes e evangelistas têm se deixado cair. É realmente gritante o quanto nós temos vivido num tempo em que o evangelho é reduzido a um simples "bateu, levou", ou talvez um evangelho, como se diz no meu estado, "vai ou racha"! Já debati muito com jovens e adolescentes, tanto de minha igreja quanto líderes denominacionais, e fico impressionado ao ver o quanto o evangelho parece, para eles, algo como grilhões para um escravo, algo que para mim, remonta ao que a história da igreja tem de pior. E mais grave ainda, remonta ao que Jesus reprovava de forma mais veemente nos fariseus e saduceus (Mateus 23). Tudo isso, ao meu ver, está a anos luz de distância do que Ele realmente pregava, muito distante também do que grandes líderes cristãos ensinaram, como Paulo, Pedro, e recentemente, C. S. Lewis (Cristianismo Puro e Simples) e N. T. Wright (Simplismente Cristão).

Gosto muito do seu blog, tem conteúdo imparcial, sem apegos à doutrinas ou denominações, é suscinto e de fácil acesso à qualquer leitor, independente de seu grau de instrução. Gostei particularmente de textos como o que fala a respeito das origens dos batistas, dos que você comenta sobre Dawkins, além, claro, desse que comentei acima.

Abraço forte, fique na paz!

Related Posts with Thumbnails

  © Blogger template 'A Click Apart' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP