quinta-feira, 16 de julho de 2009

Filosofia do Futebol Mineiro: Vale a Pena Ouvir Atleticanos?

A vida às vezes nos prega algumas peças. No futebol, o curso existencial não é diferente. Há apenas três dias eu – juntamente uma multidão de torcedores do Cruzeiro – estava confiante de que o sonho do tri-campeonato da Copa Libertadores da América se tornaria real. Porém, o sonho não se realizou.

Imediatamente após o fim da partida, uma multidão de atleticanos (pessoas que torcem pelo time rival do Cruzeiro, para quem não sabe) começou a fazer gozações das mais variadas espécies com os cruzeirenses. Hoje (quinta) pela manhã, atleticanos desfilavam orgulhosos com a camisa de seu time, com um grande sorriso amarelo na face e se sentindo totalmente vitoriosos pelo fato do seu rival ter perdido o campeonato mais importante das américas na final.

Aparentemente, tudo normal. Afinal, o que poderia ser melhor para um torcedor do que torcer por um time vitorioso e ainda ser agraciado com as derrotas vergonhosas do rival?

Porém, a realidade é muito distinta ao atleticano. O time, na verdade, nunca foi vencedor. Em 101 anos de história, o único título importante conquistado foi em 1971 – o primeiro Campeonato Brasileiro. O último título mediano que o clube tem foi conquistado há 12 anos (Copa Conmembol). A grande maioria dos atleticanos que hoje acordaram felizes com a derrota do rival jamais viram o time levantar uma taça importante.

Em compensação, a história do time pelo qual eu torço é diferente. O título que ele perdeu ontem, ele já venceu duas vezes. Além, claro, de já ter conquistado uma série de outros títulos importantes, tanto no âmbito nacional (1 Taça Brasil, 1 Campeonato Brasileiro, 4 Copas do Brasil), quanto no âmbito internacional (Recopa Sul-americana e Super Copa).

Talvez o atleticano queira se gloriar nas vitórias que tem contra o Cruzeiro, afinal, no último domingo o atlético aplicou a impressionante goleada de 3 x 0 contra o time reserva do Cruzeiro (que, convém mencionar, tinha em campo dois jogadores recém liberados do departamento médico e ainda teve um jogador expulso aos 7 segundos de jogo). Mas, que glória um clube tem em vencer um time reserva de seu rival após ficar doze partidas sem vencer esse rival (dentre estas doze partidas, lembrando aos atleticanos de mente frágil, duas vitórias esmagadoras e humilhantes pelo placar de 5 x 0).

Um atleticano pode dizer: “ah, mas você está olhando apenas para os últimos jogos, por que você não menciona os 4 x 0 que aplicamos em vocês em 2007?”. Justo, porém, voltar no tempo não ajuda em nada ao atleticano, afinal, nos últimos 20 jogos foram 13 vitórias do Cruzeiro, 4 empates e apenas 3 vitórias do Atlético/MG (uma destas três, lembrando, contra um time misto do Cruzeiro).

Mas, alguém pode dizer que eu ainda estou selecionando resultados, porém, pelo que pude evidenciar nos últimos 23 anos de vida, o Cruzeiro sempre teve mais vitórias que Atlético/MG. Não tenho os dados em mãos, mas estou plenamente certo que de 1986 para cá (ano em que eu nasci) o Cruzeiro possui muito mais vitórias que o Atlético em partidas entre as duas equipes.

Claro, se você contabilizar todos os clássicos disputados desde que o Cruzeiro surgiu, sim, o Atlético/MG tem mais vitórias. Mas, duas considerações devem ser feitas em relação a esta superioridade atleticana: (1) o Cruzeiro surgiu muito depois do Atlético/MG. Portanto, por muitos anos em que o Cruzeiro ainda era um time novo e inexperiente e o Atlético/MG um time 20 anos mais velho, jogos ocorreram e, obviamente, o Atlético/MG acumulou vitórias; e (2) a diferença de vitórias a favor do Atlético/MG em clássicos tem despencado rapidamente ano após ano e, para desespero dos atleticanos, ela está quase terminando. Posso dizer com certeza que vou evidenciar duas coisas ainda em minha vida se Deus me permitir que eu viva até os 60 ou 70 anos: o Cruzeiro ultrapassar o Atlético/MG em números de clássicos vencidos e também em número de campeonatos estaduais vencidos. As únicas diferenças restantes a favor do Atlético/MG em relação ao Cruzeiro estão diminuindo drasticamente.

Claro, existe outra diferença positiva do Atlético/MG em relação ao Cruzeiro. O Galo já foi campeão brasileiro da segunda divisão, mas, esta diferença nós não fazemos questão de tirar.

Diante deste quadro estranho (perdedores rindo dos vencedores) eu me pergunto: por que devo me chatear com a gozação dos atleticanos? Aliás, permitindo-me modificar um pouco a questão: por que deveria eu sequer levar em consideração alguma coisa que provenha de torcedores arco-íris?

Torcedores arco-íris? O que vem a ser isso?

Torcedores arco-íris são aqueles que, dado a total incapacidade de seu time em conquistar títulos, depositam toda a esperança esportiva nos times que jogam contra o rival. Somente nas últimas semanas, os atleticanos já vestiram o vermelho/preto do São Paulo, o Azul/Preto do Grêmio e o Vermelho/Branco do Estudiantes. Isto, claro, levando em conta apenas as últimas semanas.

A grande diferença entre vencedores e perdedores encontra-se em qual verbo melhor os define. Se o verbo que define uma nação é o ser, ela é vencedora; se é o ter, ela não é. Se você é um vencedor, mesmo tendo derrotas você continua vencedor; porém, se você apenas tem vitórias, o dia que você deixar de tê-las, nada sobra que possa te identificar entre os vencedores.

Esta é a grande diferença entre cruzeirenses e atleticanos. O Cruzeiro é um time vencedor. Porém, como qualquer time vencedor, às vezes algumas derrotas vêm. O Cruzeiro perdeu uma possibilidade de conquista perante o bom time do Estudiantes, mas ainda permanece respeitado no Brasil como um time cheio de glórias, tradição e vitórias.

Já nosso simpático adversário, que glórias tem? Se fosse o Atlético/MG que tivesse perdido ontem, como o Brasil o olharia? Como um grande time vencedor que naturalmente perdeu um título (que é a forma como o Brasil viu o Cruzeiro)? Ou como um perdedor que azaradamente chegou à final, mas que provavelmente perderia mesmo? Alguém ironicamente falou que o Atlético/MG é um time que “há 101 anos goza com o pinto dos outros”.

Outro sábio pensador certa vez disse que “perder um título é humano, perder todos é atleticano”. Talvez não exista maior verdade no futebol brasileiro.

Por fim, a diferença entre as duas equipes rivais de MG se mostra em seus hinos: enquanto o Cruzeiro “na realidade é um grande Campeão”, o Atlético apenas “vibra com alegria nas vitórias" (claro que "vitórias" ali se refere a vitórias dos outros times ante o Cruzeiro).

Como cruzeirense, estou sim chateado por ver meu time perdendo. Mas sei que tenho muito mais motivos para ainda o amá-lo e ter orgulho de estampar suas cores em meu corpo. Meu time é vencedor, diferentemente do nosso simpático freguês Atlético/MG, que só tem a comemorar títulos de campeonatos de segunda divisão, vitórias contra times reservas do Cruzeiro e, claro, derrotas eventuais de meu time.

Vamos Cruzeiro!


Eliel Vieira
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Resposta a Érica: Sobre a Compatibilidade Entre Teoria da Evolução e Fé Cristã

Olá Eliel,

Bom dia. Graça e Paz!

Conheci seu blog por uma "Jesuicidência"... E achei muito interessante seus posts, em especial seu ponto de vista em vários assuntos, sendo você um cristão.

Isso ajuda quebrar paradigmas que existem em nosso meio. Sou cristã e indiquei seu blog a um amigo ateu.

O fato que me intrigou é que li agora sobre a Teoria da Evolução e a Fé cristã, e gostaria de tirar uma ou algumas dúvidas:

Você não acredita então que fomos criados literalmente pelas mãos de Deus? Que somos feitos do barro, conforme Gn 2.7?

Conforme: "(2) mesmo que se prove que Deus não possuiu papel algum no processo de criação do ser humano, ainda assim existiria uma infinidade de questões sobre as quais a ciência não é capaz de dar explicações e que fé explica;" você não crê na veracidade total da Bíblia, apenas parcial? Porque se for provado que Deus não tem nenhum papel na criação do homem, então não precisamos acreditar que a Bíblia é inerrante, pois ela afirma em Gn 1: 26 e 27 que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança. A imagem e semelhaça de Deus se evoluiu ao longo do tempo? Deus se evoluiu ao longo do tempo? Ou nós não somos mais imagem de Deus pq evoluímos? E porque as evoluções (em espécies) não continuaram? Evoluímos sim, mas como homens. Se Jesus não voltar nesse milênio poderemos (ou nossos filhos) ser outro tipo de coisa futuramente?

Sei que não tenho tanto conhecimento quanto você. Pois pelo que vi você estuda muito. Lê muitos livros. Mas se não for mto incômodo gostaria que vc me esclaresse algumas dessas dúvidas.

Obrigada.

Abraços.

Fica na Paz.

Att. Érica Leal (Por e-mail em 15/07/2009)


RESPOSTA

Olá Érica,

Primeiramente, obrigado pelo seu contato. Muito me agrada sua mensagem.

Sua primeira pergunta é: Você não acredita então que fomos criados literalmente pelas mãos de Deus? Que somos feitos do barro, conforme Gn 2.7?

Depende do que se entende por "literalmente", sua pergunta (mesmo que não intencional) é uma pegadinha. Acredito que Deus criou tudo o que existe neste universo. Literalmente acredito que Deus criou todas as coisas, inclusive o ser humano. Porém, não acredito que o relato de Gênesis seja uma descrição literal sobre o evento da criação, pelos motivos que eu expliquei em meu texto.

Portanto, sim, Deus literalmente criou o ser humano e as demais coisas existentes no universo. Ele, literalmente, é a causa e a razão da existência de tudo o que existe (Rm 11:36).

Outra dúvida sua é em relação à passagem que eu afirmo que “mesmo que se prove que Deus não possuiu papel algum no processo de criação do ser humano, ainda assim existiria uma infinidade de questões sobre as quais a ciência não é capaz de dar explicações e que fé explica”.

Você questiona se eu acredito ou não na veracidade integral da Bíblia. Bem, esta é uma questão muito difícil de responder, pois a resposta é ampla. A melhor forma de respondê-la é: a Bíblia é inerrante em aspectos espirituais, como “Palavra de Deus” revelada aos homens, mas, como qualquer livro escrito em uma época em que as pessoas não possuíam tanto conhecimento quanto possuem hoje, possui erros.

Um “erro”, por exemplo, é a menção de que a luz da Terra não provém do Sol. Para Moisés (suposto escritor de Gênesis), a luz que ilumina a Terra surgiu no primeiro dia da criação e o Sol apenas no quarto, como um enfeite para sinalizar que era dia. Hoje sabemos que isto não é verdade. Por mais fé que a pessoa possa ter na inerrância da Bíblia, ela jamais acreditará que a luz que ilumina a Terra não provenha do Sol.

O fato de a Bíblia conter erros sobre assuntos que os escritores não tinham como ter conhecimento, porém, não faz da Bíblia um livro menos especial do que é. Lembre-se: a Bíblia foi um livro inspirado por Deus, não psicografado por Ele. As pessoas costumam pensar que foi Deus quem ditou as palavras que estão na Bíblia, porém, isto não é verdade. O que os cristãos acreditam (pelo menos eu penso assim) é que Deus se revelou sutilmente por trás de cada letra escrita, de forma que, se você olhar além do que está escrito, você encontrará os princípios que devem reger uma vida cristã íntegra.

Um exemplo que costumo usar é o das cartas que eu escrevo para minha namorada. Eu não sou muito bom em escrever poemas, mas as vezes eu arrisco escrever algumas coisas para ela. É o amor que eu sinto por ela que me inspira a escrever, de forma que, se alguma pessoa ler o que eu escrevo para ela, conseguirá descobrir muitas características sobre nosso namoro nas palavras escritas. As palavras não dizem, em si, nada sobre nosso namoro. Mas, olhando por trás das palavras, pode-se descobrir muita coisa. Outro exemplo que ainda pode ser extraído desta analogia é que o amor que eu sinto por ela me inspirou a escrever a ela, não forçou ou ditou o que eu deveria escrever.

Penso na revelação de Deus na Bíblia desta forma: como uma inspiração.

Um texto que trata da inerrância de forma muito interessante é este aqui.

Portanto, para responder sua pergunta de forma direta: sim, eu acredito que a Bíblia é a Palavra de Deus e que ela contém a revelação escrita de Deus por trás de suas palavras, porém, não a considero um livro inerrante em uma série de assuntos. Mesmo assim, contudo, não deixo de acreditar que a Bíblia é um livro mais especial já escrito, pois sei que as pessoas que a escreveram não possuíam conhecimento pleno sobre todas as áreas de conhecimento existentes, o que justifica os erros que ela contém.

A seguir você faz o seguinte comentário sobre minha frase citada um pouco acima: “Porque se for provado que Deus não tem nenhum papel na criação do homem, então não precisamos acreditar que a Bíblia é inerrante, pois ela afirma em Gn 1: 26 e 27 que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança.

Creio que você confundiu um pouco minhas palavras quando eu disse que “mesmo que se prove que Deus não possuiu papel algum no processo de criação do ser humano”. Eu não disse que a ciência um dia chegará a esta conclusão, na verdade, como acredito que Deus criou todas as coisas existentes, e como estou plenamente convicto de que isto é verdade, tenho certeza que jamais tal prova surgirá. O que eu quis dizer é que, mesmo que esta prova surja – o que é impossível – ainda assim existiria uma série de questões para as quais a ciência não possui condições de fornecer provas.

Um delas, por exemplo, é sobre a basicalidade da crença em Deus para aquele que crê em Deus. Segundo os estudos epistemológicos, existem crenças que são básicas ao ser humano. Por exemplo, a crença de que o mundo externo real existe. Tudo o que você pensa ser verdadeiro pode, no final das contas, ser uma farsa forjada por máquinas ou monstros malévolos que plugaram uma série de fios em seu cérebro (como no filme Matrix). É absolutamente impossível dizer se isto é ou não verdadeiro com provas. A crença de que o mundo externo existe, portanto, é uma crença básica epistemologicamente. Outro tipo de crença que é básica são as crenças de que nossos pais nos amam. É absolutamente impossível apresentar qualquer prova de que uma pessoa X ama outra Y. Toda prova apresentada pode ser falsificada de alguma forma. Mas todas as pessoas acreditam que seus pais lhe amam (exceto em alguns casos particulares, claro) e esta crença parece ser absolutamente válida para quem crer.

A crença em Deus seria, assim, uma crença básica. Uma crença sobre a qual não se pode apresentar nenhuma evidência conclusiva, mas que ainda assim não deixa de ser justificada. Foi o filósofo Alvin Plantinga quem propôs que a crença em Deus é básica.

Além deste problema, um grande número de questões metafísicas permanecerá eternamente irrespondível para a ciência caso se apresente uma prova de que Deus não teve papel algum na criação das coisas (prova que, lembrando, jamais virá). Por exemplo, por que existe algo ao invés do simples “nada”, se nenhum agente criou as coisas existentes?

A teoria da evolução não contradiz a fé cristã, uma vez que o “evolucionismo” é uma forma de se poder criar coisas, e Deus pode ter feito uso deste método para ter criado as coisas existentes. Uma pergunta que fiz é: onde Deus se torna menos soberano se Ele tiver criado a diversidade biológica existente através do processo de evolução das espécies? Ou, mudando a pergunta um pouco: onde Deus se torna menos soberano se Ele tiver estabelecido o processo de seleção natural como procedimento para gerar a diversidade das espécies existentes, visando, assim, se relacionar com a espécie homo-sapiens que surgiria algum tempo depois do início do processo?

A fé cristã não é intrinsecamente contrária à teoria da evolução das espécies. Esta é a conclusão de meu texto. Se a teoria da evolução aconteceu de fato, aí é outra história. A ciência tem dito que sim, que as espécies diferentes existem por causa do processo de seleção natural. Na falta de um bom motivo para questionar a integridade das pessoas que estudam a natureza, não vejo motivos para duvidar deles.

Suas últimas perguntas são: “E por que as evoluções (em espécies) não continuaram? Evoluímos sim, mas como homens. Se Jesus não voltar nesse milênio poderemos (ou nossos filhos) ser outro tipo de coisa futuramente?

Bem, as evoluções continuam sim, mas não se consegue observá-las – salvo em raras exceções – em uma mesma geração. A teoria da evolução ensina que mutações muito pequenas vão acontecendo nas espécies e que após milhares de anos estas mutações se tornam evidentes. Imagine que você possua R$32,76 em sua conta no banco e que a cada ano o banco injete 0,01 centavos nela. Em 60 anos você não sentirá diferença alguma em sua conta, mas se você acessar sua conta a daqui 50 milhões de anos, sentiria uma diferença enorme no valor existente.

O que a teoria da evolução das espécies ensina é isso. As espécies existentes são oriundas de um mesmo ancestral comum. Após vários processos de reprodução e várias mudanças do ambiente, as espécies foram lentamente se mutando até existir esta absurda variedade de espécies existentes.

Portanto, se Jesus não voltar neste milênio, provavelmente ele encontrará seres humanos aqui ainda. Mil anos são como apenas poucos segundos se comparados a todo o processo de evolução (4,6 bilhões de anos).

Apesar de que, ao que parece, o ser humano nem de longe pareça estar evoluindo, dado a quantidade de maldade e falta de amor existente no mundo. Parece, na verdade, que estamos em involução.

Mas, isto é assunto para outro texto.

Espero ter respondido a suas dúvidas. Fique a vontade para perguntar o que quiser.

Abraço.

Eliel Vieira
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sábado, 11 de julho de 2009

Cristianismo e as Demais Religiões Existentes

Uma das questões teológicas que mais me perturbaram (e, confesso, ainda penso muito sobre ela) é sobre a relação entre a fé cristã e as demais religiões existentes. Dentro desta questão, várias perguntas surgem, como: Os não-cristãos serão salvos? Como Deus enxerga os islâmicos, por exemplo? Devemos buscar relacionamentos com as demais religiões (ecumenismo)? Se sim, qual será o momento oportuno para testemunhar a fé em Cristo?

Certamente, tratam-se de questões bastante indigestas para os “em-cima-do-muro” e às pessoas mais pragmáticas em relação à fé, porém, em meio ao relativismo pós-moderno em que estamos vivendo, acho que as questões relativas à variedade de religiões devem ser discutidas por nós cristãos.

A gama de assuntos que são levantados por estas questões é, evidentemente, enorme, portanto, vou neste texto apenas introduzir você, leitor, ao problema em questão; apresentar as teorias já propostas na tentativa de responder ao problema; e dizer algumas de minhas opiniões. Pretendo não trazer conclusões aqui, apenas reflexões.

O problema principal a ser abordado (dentre os vários existentes) é: existem milhares de religiões no mundo e todas igualmente afirmam ser verdadeiras e seguirem ao Deus verdadeiro. Se o cristianismo é a religião verdadeira, o que será dos não-cristãos quando morrerem?

Os que respondem a esta questão se dividem em três grupos: os exclusivistas, os pluralistas e os inclusivistas.

Exclusivismo: o exclusivismo prega que apenas uma dentre as religiões existentes no mundo conduz o fiel a Deus. Todas as demais religiões existentes são farsas ou enganações criadas por seres humanos. Existem as versões fortes e fracas do exclusivismo. Os exclusivistas fortes são os chamados fundamentalistas, que não apenas pregam a veracidade única de sua religião, mas também pregam que se deve manter total distância em relação às demais religiões existentes. Os exclusivistas fracos também são chamados de inclusivistas (leia sobre eles mais abaixo).

Pluralismo: o pluralismo é o extremo oposto ao exclusivismo. Para os pluralistas, todas as religiões são igualmente verdadeiras e todas igualmente conduzem seus fieis a Deus. Também podemos identificar as versões fracas e fortes do pluralismo. Os pluralistas fortes declaram que todas as religiões são igualmente certas (ou igualmente erradas) em suas afirmações sobre Deus (não existem religiões mais corretas que outras). Já os pluralistas fracos chegam a reconhecer que algumas religiões contêm mais coerência que outras, apesar de que, ainda assim, todas são caminhos para o mesmo Deus no final das contas.

Inclusivismo: o inclusivismo concorda com o exclusivismo que apenas uma dentre as religiões disponíveis é verdadeira. Porém, diferentemente do “exclusivismo forte”, o inclusivismo diz que Deus não condenará os integrantes das demais religiões apenas por eles não terem escolhido a religião verdadeira enquanto vivos. Para o inclusivista, Deus proverá meios para os integrantes das demais religiões que possibilitem a eles a oportunidade conhecê-Lo e manter com Ele um relacionamento.

Antes de prosseguir, responda mentalmente: em qual destes três grupos você se encontra?

Desta parte do texto até o final apresentarei basicamente minhas opiniões sobre a questão. Você é livre para discordar ou me corrigir se achar necessário.

O pluralismo forte, em minha opinião, apesar de ser compartilhado pelo pensamento secular do mundo atual, incorre em várias falhas. Tomemos como exemplo, o princípio lógico da não contradição e a divindade de Jesus Cristo. O princípio lógico da não contradição diz que uma substância não pode possui e não possuir ao mesmo tempo certo ser ou certa propriedade. Segundo este princípio, portanto, Jesus não pode ser e não ser ao mesmo tempo Deus. Jesus Cristo, necessariamente, é ou não é Deus, ele não pode ser e não ser ao mesmo tempo Deus. Ora, para o cristianismo, Jesus Cristo é uma manifestação da divindade de Deus; para as demais, Jesus ou foi um profeta (islamismo) ou foi um agitador apenas (judaísmo) ou foi apenas um homem de moral elevada (hinduísmo). Pela lei da não contradição, ou o cristianismo é a única religião verdadeira em relação à divindade de Jesus Cristo, ou ela é falsa e as demais, a priori, verdadeiras.

Qualquer que seja a verdade sobre Jesus Cristo, porém, podemos saber que a idéia de que todas as religiões são totalmente verdadeiras é um mito, nada mais. As religiões diferem entre si e, pela lei da não contradição, sentenças contraditórias sobre determinado assunto não podem estar igualmente e plenamente verdadeiras.

O pluralismo fraco reconhece que as religiões diferem entre si e que algumas são mais verdadeiras que outras em alguns aspectos, porém, ainda assim, afirmam os pluralistas fracos, todas elas são caminhos que conduzem os fieis à mesma salvação.

Apesar de ser uma posição adotada por muitos, o pluralismo fraco me soa incoerente por alguns motivos. Veja bem: as religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) afirmam (judaísmo, com reservas) que o objetivo máximo da existência é viver eternamente com o Deus criador; outras religiões pregam que o objetivo máximo é conseguir uma evolução de espírito para viver novamente aqui em outra vida (p. ex. espiritismo) e outras ainda afirmam que não haverá nada além de nossa morte (p. ex. religiões orientais).

Imagine agora que você é um espírita e que por toda sua vida você alimentou o desejo de renascer em um nível espiritual mais elevado, então, quando você morre, você se depara que a verdade era que as religiões monoteístas sempre estiveram corretas. Ora, por mais que o Deus verdadeiro seja misericordioso e te ofereça “salvação”, você não estará recebendo aquilo pelo qual você se esforçou enquanto em vida. A “salvação” que você ansiava era uma vida nova aqui na Terra, não uma eternidade ao lado de um Ser que você não conhece.

Portanto, mesmo que aceitemos que o pluralismo fraco seja verdadeiro e que Deus conceda às pessoas das demais religiões a salvação, mesmo se assim fosse, ninguém mais além daqueles que de fato acreditaram no Deus verdadeiro enquanto em vida estariam satisfeitos na eternidade. Em outras palavras, mesmo que Deus garantisse a todas as pessoas a salvação, apenas os que buscaram o Deus verdadeiro enquanto estavam vivos, desfrutariam da salvação de forma plena na eternidade, os demais estariam recebendo um presente que eles não desejaram ganhar. Uma analogia seria uma criança que, esperando ansiosamente o ano inteiro para ganhar um vídeo-game no Natal, ganha, ao invés do presente desejado, um tabuleiro de xadrez.

Existem muitos cristãos que são pluralistas, porém, eles são falhos em responder como seria possível que todas as pessoas desfrutem de um relacionamento eterno com Deus – se Deus a concedesse salvação a todas as pessoas – mesmo várias destas pessoas não desejando viver este relacionamento com Deus.

Pense no caso dos ateus. Imagine como seria desagradável a um ateu ter de passar o resto da eternidade ao lado de um Deus que ele sempre negou enquanto ele estava vivo. Richard Dawkins já nomeou Deus dos mais absurdos adjetivos que se podem ser atribuídos a um ser, haveria castigo maior a Dawkins do que forçá-lo a viver ao lado de Deus por toda eternidade?

Colocando de fora o pluralismo, sobram o exclusivismo e o inclusivismo.

O exclusivismo é aceito por praticamente todas as pessoas seguidoras das religiões monoteístas, porém, enxergo várias dificuldades com esta posição, especialmente em relação ao exclusivismo forte. Apenas recapitulando, o exclusivismo forte diz que apenas uma religião é verdadeira e possui o caminho a Deus e, quem não seguir esta religião, está condenada à separação eterna de Deus.

O principal problema com o exclusivismo forte (defendido principalmente pelos cristãos) é que ele ataca o próprio cristianismo. A resposta comum “sei que estou no caminho certo porque o Espírito Santo me testifica que estou” não pode ser uma resposta válida na busca de se justificar sua religião uma vez que, convenhamos, todas as pessoas de todas as religiões afirmam ter uma testificação interna de que está no “caminho certo”.

Vamos aceitar por hora que o cristianismo seja a religião verdadeira. Mas qual cristianismo? O ortodoxo grego, o católico romano ou o protestante? Se for o protestante, qual deles? O cristianismo reformado, o luterano, o anglicano, o puritano, o metodista, o batista, o adventista, ou o evangélico? Já ouvi em várias denominações o absurdo de que não apenas “apenas os cristãos serão salvos”, mas que apenas os membros da denominação X serão salvos, pois eles sim agem conforme a vontade de Deus. Obviamente o Espírito Santo não testifica contradições nos corações de seus filhos, portanto, é bem provável aceitar que as pessoas confundem com muita freqüência “testificação do Espírito Santo” com “conforto pessoal”.

Tenho contra o exclusivismo forte, também, o fato de que encontramos muitos cristãos (por modelo de conduta) fora da religião cristã, o que me faz perguntar: não poderia Deus ter provido um meio de se revelar seu Logos às pessoas além do meio que conhecemos?

Se isto for possível (e certamente não deixaria de ser possível apenas porque alguns cristãos mesquinhos não querem compartilhar Cristo com as demais pessoas) Deus teria provido em cada cultura do mundo um meio alternativo de acesso a Ele além da revelação de Jesus Cristo há dois mil anos atrás de forma que todas as pessoas, de todas as culturas, povos e nações, terão alguma chance de escolha em relação à eternidade.

Esta opção alternativa é o inclusivismo. Ela aceita que Jesus Cristo é o único caminho para a salvação eterna, porém, de acordo com ela, Deus tem tanto amor e tanta misericórdia para com sua criação que desde os tempos remotos tem provido às pessoas que não tem acesso à fé cristã (por exemplo, as tribos indígenas isoladas e os mulçumanos que nascem e crescem aprendendo o islã) “caminhos alternativos” com o objetivo de que todas elas possam escolher, sem nenhuma pressão, se elas querem de fato passar a eternidade em relacionamento com Deus.

Que fique bem claro: não estou dizendo aqui que existem caminhos alternativos além de Cristo que levam uma pessoa a Deus. Estou dizendo que o próprio Cristo se revela de formas alternativas a povos e culturas distintas. Segundo esta teoria, o Logos de Deus, além de ter se revelado ao mundo na pessoa de Jesus Cristo a dois mil anos atrás, se revela de forma alternativa em culturas que possuem barreiras em relação à Israel, por exemplo.

Confesso, esta tem sido a explicação que mais tem me agradado dentre as que têm sido oferecidas. Porém, como todas as demais, ela tem seus problemas e ainda não cheguei a nenhuma conclusão quanto ao problema da variedade de religiões existentes.

Acredito que C. S. Lewis foi muito sábio nas suas palavras em relação às demais religiões existentes:

Se você é cristão, não precisa acreditar que todas as outras religiões estão simplesmente erradas de cabo a rabo. [...] Se você é cristão, está livre para pensar que todas as religiões, mesmo as mais esquisitas, possuem pelo menos um fundo de verdade. [...] É claro, no entanto, que, pelo fato de sermos cristãos, nós temos efetivamente o direito de pensar que, onde o cristianismo difere das outras religiões, ele está certo e as outras, erradas. É como na aritmética: para uma determinada soma, só existe uma resposta certa, e todas as outras estão erradas; porém, algumas respostas erradas estão mais próximas da certa do que as outras.

Podemos, a partir daqui, refletir sobre a importância do diálogo com as demais religiões do mundo em busca de conquistar objetivos comuns. Por exemplo, vencer a fome no mundo é um objetivo tanto do cristão, quanto do mulçumano, quanto do ateu. Que mal há deixar as diferenças de cosmovisão de lado por um instante e juntar as forças no intuito de resolver esta questão? Que mal haveria se os cristãos se juntassem aos espíritas e realizassem obras de caridade junto com eles?

Existe um exemplo muito “evangélico” que posso dar em relação a isso. Recentemente vi o pastor Silas Malafaia falando contra a aprovação do PLC 122/2006 (crime de homofobia) dizendo que o Brasil é uma nação onde 93% das pessoas professam a fé cristã e que, portanto, o Estado deveria levar em conta a opinião e respeitar a opinião religiosa do povo. Ora, tenho plena certeza que o Silas Malafaia não considera os católicos como cristãos de fato, da mesma forma que muitos católicos não consideram nós, evangélicos, como cristãos autênticos. Porém, uma vez que ambos possuem um problema em comum e um objetivo em comum, deixou-se de lado as diferencias teológicas e todos passaram a ser unicamente “cristãos” no intuito de que seja atingido o objetivo que beneficiaria tanto a católicos, quanto a evangélicos.

Alguns podem dizer que agir deste modo é agir com falsidade, mas esta acusação é infundada. Se lermos a história do povo hebreu na Bíblia veremos que por inúmeras vezes a nação de Israel se relacionou com nações vizinhas quando tinham o objetivo de derrotar algum inimigo comum. A Bíblia diz que a época mais próspera de Israel foi a primeira parte do reinado de Salomão, quando havia paz em todas as divisas da nação e relações comerciais mútuas aconteciam entre Israel e as demais nações. A Bíblia diz que jamais houve pessoa tão sábia quanto Salomão.

Para uma igreja próspera, precisamos saber nos relacionar com aqueles que discordam de nós. Unilateralismo nunca ajudou ninguém, seja na política, seja na economia, seja na diplomacia entre as nações, seja na história eclesiástica.

Portanto, aqui temos bons pontos para reflexão.


Eliel Vieira
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quinta-feira, 9 de julho de 2009

A Teoria da Evolução é Incompatível com a Fé Cristã?

Um dos pontos mais levantados atualmente no debate sobre a existência de Deus é sobre a narração da criação conforme o Gênesis e as descobertas feitas pela ciência sobre a evolução das espécies. Pretendo neste texto, explorar um pouco sobre esta relação (Evolução x Fé Cristã) e dizer qual é meu ponto de vista sobre a questão.

Mesmo resumindo ao máximo possível o que se tinha a escrever, o texto ainda ficou um pouco longo. Certamente, porém, o texto não está cansativo. Se os debates concernentes à origem do universo e da vida te interessam, garanto-lhe que a leitura será a você bastante agradável.

Antes de prosseguir, contudo, preciso deixar uma coisa bem clara aos ateus e a aqueles que possam questionar o fato de eu usar a Bíblia como fonte confiável de conhecimento. Neste texto vou responder à questão: “A teoria da evolução é incompatível com a fé cristã?” e seria impossível responder a esta questão sem analisar o que a Bíblia – considerada pelos cristãos como manual de fé e prática – diz sobre a origem das coisas existentes. Talvez você, ateu, por achar que a Bíblia é apenas um livro de fábulas, pense ser perda de tempo analisá-la aqui, porém, é impossível dizer se existe uma incoerência entre duas partes (fé cristã e ciência) se não podemos analisar o que uma delas (fé cristã) de fato ensina.

Além de levar em conta o que a Bíblia diz sobre a origem das coisas existentes, é necessário também levar em conta quais são os métodos de interpretação bíblica existentes e qual é o melhor a ser aplicado à passagem de Gênesis.

Os ateus podem retrucar dizendo que deve-se ler as passagens bíblicas de forma literal, como se elas estivessem significando exatamente o que elas tentaram transmitir, porém, apesar de alguns cristãos empregarem este método de interpretação da Bíblia ainda hoje, ao longo da história vários pensadores cristãos foram contrários a ele. Vamos, portanto, primeiramente expor qual é o relato bíblico da origem das coisas existentes e também expor qual deva ser o método de interpretação adequado para interpretar este relato.


O Relato da Origem Segundo a Bíblia


De acordo com o relato de Gênesis, Deus criou os céus e a terra (Gn 1:1) e, depois de seis dias – onde em cada dia Deus trabalhou em algo – tudo veio a existir como conhecemos que é. O planeta Terra, o Sol, a Lua, as estrelas, os animais, as plantas e por fim o ser humano, tudo o que é existente no universo veio a existir em um processo que durou seis dias. Este evento, se interpretarmos a Bíblia literalmente, teria ocorrido a não mais de 8 mil anos atrás. Em resumo, este é o relato da criação conforme o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis.

Se interpretarmos esta passagem de forma literal, a conclusão óbvia é de que não existiu nenhum processo de evolução e não apenas as explicações biológicas das origens seriam incompatíveis com a Bíblia, mas também as descobertas cosmológicas que apontam o início do universo para um evento que ocorreu a 14 bilhões de anos atrás.

Se, por outro lado, conseguirmos apontar bons motivos para que não interpretemos esta narração das origens em Gênesis de forma literal, talvez consigamos achar um ponto de convergência entre os relatos da Bíblia e as descobertas da ciência.

Chamam-se de fundamentalistas aqueles que interpretam a descrição do Gênesis de forma absolutamente literal. Especialmente nos países da América (tanto nos Estados Unidos, quanto na América Latina), os que interpretam estas passagens de forma literal são grande maioria entre os cristãos. Diferente do que os fundamentalistas propõem, todavia, existem sim boas razões para desconsiderar o literalismo como melhor forma de interpretar os relatos de Gênesis.

Vejamos um deles: todos nós sabemos que a luz que ilumina nosso planeta provém do Sol. Porém, de acordo com o relato de Gênesis, a luz que ilumina nosso planeta foi criada no primeiro dia da criação (Gn 1:3), porém, o Sol foi criado apenas no quarto dia da criação (Gn 1:14-19). Analisando esta passagem à luz do conhecimento que hoje temos sobre nosso sistema solar, fica bastante difícil interpretar este relato da criação de forma literal.

Posso ainda mencionar outro motivo para desconsiderar que o literalismo deva ser o método usado para interpretar os relatos de Gênesis sobre a origem das coisas existentes: o surgimento do homem e da mulher. De acordo com Gn 1:26-31, homem e mulher foram criados no mesmo dia, no sexto dia da criação. Porém, no segundo capítulo de Gênesis, o autor aponta inúmeras tarefas que aconteceram entre a criação do homem e da mulher, por exemplo:

- Deus criou um jardim no Éden (Gn 2:8)
- Deus plantou várias árvores neste jardim (Gn 2:9)
- Deus instruiu ao homem a como cuidar deste jardim (Gn 2:15)
- Deus deu outras ordenanças ao homem (Gn 2:16-17)
- Deus então percebeu que o homem se sentia só (Gn 2:18)
- Deus então criou todas as feras do campo e as aves do céu (Gn 2:19)
- Deus ordenou ao homem que desse nome a todos os animais existentes (Gn 2:19)
- O homem deu nome a todos os animais existentes (Gn 2:20)
- O homem dormiu (Gn 2:21)

Apenas depois de todas estas coisas acontecerem, Deus fez a mulher (Gn 2:22), porém, no relato do primeiro capítulo de Gênesis (Gn 1:26-31), ambos surgiram no mesmo sexto dia da criação. Certamente Adão não levou apenas algumas horas para dar nome a todos os animais existentes e também Deus não teria motivos para criar todas as árvores que enchiam o Éden como em um passe de mágica (Gn 2:9). Aliás, a própria passagem bíblica diz que as árvores “cresceram do solo” e, até onde eu sei, nenhuma árvore cresce do solo em poucas horas. Anos, talvez décadas, são necessárias para que uma árvore cresça.

Aqueles que interpretam o relato de Gênesis de forma literal, portanto, encontram-se em enorme dificuldade para responder a estas e a várias outras objeções que podem ser levantadas contra a narração literal. Existe, porém, outro método de interpretação bíblica, que é o de acomodação.


O Método de Acomodação na Interpretação Bíblica


De acordo com este método, Deus, na busca de se revelar a criaturas com limitação intelectual, enfrentou praticamente os mesmos problemas que um pai enfrenta ao tentar se comunicar com seus filhos pequenos (MCGRATH, 2005, 308). Certamente, se Deus – ao se revelar a Moisés – tivesse ditado todos os pormenores da teoria do Big Bang e os mínimos detalhes que envolvem a teoria da Evolução das Espécies, Moisés e seu povo não entenderiam absolutamente nada. De acordo com o método acomodação, portanto, ao interpretarmos a Bíblia, devemos levar em consideração a possibilidade de que o que foi escrito não corresponde em 100% com a realidade, uma vez que as narrativas foram escritas por pessoas que possuíam grande limitação intelectual.

Moisés (acredita-se, o escritor dos relatos de Gênesis) não era cosmólogo, muito menos biólogo, Moisés era um profeta. O intuito de Moisés não era dizer como Deus criou todas as coisas, apenas dizer quem foi o criador. Se isto não for levado em consideração ao se interpretar o relato de Gênesis, não vamos lograr êxito algum em nossa interpretação bíblica.

Um dos mais importantes teólogos da história da Igreja, João Calvino, defendeu a acomodação como método mais eficaz de se interpretar a Bíblia. Para Calvino,

Deus acomoda-se à capacidade da mente e do coração do ser humano. Deus manifesta uma imagem que somos capazes de entender. A analogia que ilustra o pensamento de Calvino nessa questão é a de um orador. Os bons oradores conhecem as limitações de sua audiência e adaptam sua maneira de comunicar de acordo com essas limitações. A distância que existe entre o orador e o ouvinte deve ser superada, para que haja comunicação.

Se Deus de fato acomodou a verdade para que a entendêssemos enquanto ainda não tínhamos capacidade intelectual para entendê-la (o que provavelmente aconteceu, uma vez que o método literal de se interpretar o Gênesis se mostra falho em vários pontos), segue-se, à medida que passamos a ter mais conhecimento sobre o Cosmos, devemos acomodar nosso conhecimento com a realidade. Devemos, de acordo com este ponto de vista, levar em consideração tudo o que a ciência tem descoberto e assim relacionarmos nossa fé com a realidade de forma cada vez mais eficaz.

A questão que emerge aqui é a seguinte: o que a ciência tem descoberto?


As Descobertas da Ciência em Relação às Origens


Muitos críticos da teoria da evolução argumentam que ela não passa de uma “teoria” e que, portanto, não devemos considerá-la ainda como uma explicação eficaz sobre o surgimento da vida e da variedade de espécies do universo. Porém, tal crítica repousa sobre um entendimento incorreto dos significados possíveis a “teoria” e à aplicação dela à evolução.

Em algumas situações, “teoria” significa sim “hipótese”, “conjectura” ou “especulação”, porém, não em todos. Em algumas situações, o termo “teoria” é empregado como “descrição detalhada e racional” de algo. Por exemplo, todos aceitam que a existe uma força que atrai todos os corpos para o centro da Terra, porém, mesmo todos reconhecendo e podendo evidenciar a existência desta força, a descrição dela ainda é (e sempre será) chamada de “teoria da gravidade”. Outro exemplo que pode ajudar a elucidar a sua mente quanto a esta aplicação do termo “teoria” é a sentença “teoria musical”. Quando alguém pronuncia esta sentença, ela não está mencionando uma conjectura ou uma hipótese sobre a música e sim algo relacionado ao estudo musical mais profundo.

Portanto, a primeira objeção a priori em relação à teoria da evolução – a de que ela não deveria ser considerada verdade porque ainda é uma “teoria” – é falsa, pois é sustentada sobre uma limitação de nosso idioma. A verdade, para esclarecer de vez, é que: quando os cientistas chamam a teoria da evolução de “teoria”, eles não estão tratando ela como uma possibilidade dentre muitas, antes, estão dizendo que ela é uma descrição detalhada e racional sobre a origem da vida e sua diversidade.

O que a ciência descobriu até o momento?

Existem evidências bem sólidas – não vejo motivos para cansar você, leitor, mencionando-as aqui – de que o universo surgiu a 14 bilhões de anos atrás em um evento batizado de Big Bang. Estudos recentes apontam que o nosso planeta possui 4,55 bilhões de anos de idade, com uma variação de erro de cerca de 1% apenas. As evidências têm apontado também para o fato de que nosso planeta era um lugar praticamente inabitado durante seus primeiros 500 milhões de anos por causa, dentre vários outros motivos, dos constantes ataques de meteoritos e asteróides.

Apenas a cerca de quatro bilhões de anos as primeiras formas de vida microbiana são encontradas em nosso planeta. A origem da vida ainda é um mistério para a ciência e certamente foi um evento de improbabilidade absurdamente alta, o que tem levado alguns estudiosos a aceitarem inclusive a possibilidade que a vida foi plantada em nosso planeta por algum agente extraterrestre.

Pois bem, após os bilhões de anos que se seguiram as espécies foram se mutando conforme as necessidades que elas tinham de se adaptar ao ambiente em que se encontravam. As espécies que não se adaptavam eram extintas, as que se adaptavam, sobreviviam e transmitiam para sua geração seguinte as mutações em seu gene. O primeiro a propor tal mecanismo como explicação para a variedade das espécies existentes foi Charles Darwin, motivo pelo qual a teoria da evolução é também conhecida como darwinismo.

Enfim, de forma bastante resumida, esta é a explicação da ciência para a diversidade de espécies existentes em nosso planeta. Não sou cientista, mas, dando crédito ao que os cientistas têm dito, existem boas razões para acreditar que as espécies de fato evoluíram de um mesmo ancestral comum. Obviamente, se um dia alguém me apresentar um bom motivo pelo qual eu devo duvidar da palavra daqueles que estudam a vida, assim eu farei, mas, na ausência de quaisquer razões que apontem para a idoneidade da ciência e dos cientistas, por que deveria eu agir assim e desconsiderá-los?

Alguns cristãos fundamentalistas afirmam que não se deve confiar nos cientistas porque eles estão – de alguma forma – inventando as descobertas sobre os fósseis e sobre a evolução apenas porque eles são ateus e, se provada a teoria da evolução, Deus não seria mais necessário para explicar a origem da humanidade. Esta acusação é completamente infundada, por várias razões: (1) é possível pensar em Deus mesmo aceitando as conclusões e as descobertas da teoria da evolução (este texto é uma prova disso); (2) mesmo que se prove que Deus não possuiu papel algum no processo de criação do ser humano, ainda assim existiria uma infinidade de questões sobre as quais a ciência não é capaz de dar explicações e que fé explica; e (3) não são apenas os cientistas ateus que afirmam a evolução, cientistas cristãos também.

Veja, por exemplo, as palavras de Francis Collins, cientista diretor do Projeto Genoma Humano e cristão convícto:

Na verdade, para quem, como eu, trabalha com genética, é quase impossível imaginar uma correlação das imensas quantidades de dados surgidos de estudos de genomas sem os fundamentos da teoria de Darwin. Como afirmou Theodosius Dobzhansky, destacado biólogo do século XX (e devoto da Igreja Cristã Ortodoxa do Oriente): “Nada tem sentido na Biologia, exceto à luz da evolução".

Francis Collins não é o único cristão que endossa as descobertas da ciência. Podemos identificar ao longo da história vários cristãos de importância teológica que, não apenas aceitaram as conclusões da ciência, mas que incentivaram seu estudo como forma de se conhecer melhor a Deus a nós mesmos, dentre os quais podemos mencionar Santo Agostinho, que claramente advertia aos cristãos para a necessidade de ter cautela quanto às posições “Deus nas Lacunas”, Blaise Pascal, C. K. Chesterton, C. S. Lewis, entre vários outros.

Neste artigo, o Rev. Caio Fábio - que é um dos mais conhecidos pastores e escritores entre os cristãos brasileiros - fala sobre Darwin, suas descobertas e a relação entre elas e a nossa fé. Caio Fábio diz que se delicia no amor de Deus sempre que assiste documentários sobre a evolução das espécies.


Conclusão


Este texto teve como objetivo principal mostrar que, a priori, não existem incompatibilidades entre a teoria da evolução e a fé cristã. Se reconhecermos que o método de interpretação literal não é o mais adequado para se interpretar o relato da criação de Gênesis, temos boas razões para levar em consideração tudo o que a ciência já descobriu sobre a origem das coisas existentes.

Por fim, se Deus é soberano, que mal existiria se Ele tivesse nos criado através do processo de evolução das espécies. Em que aspecto Deus seria menos criador ou menos soberano se Ele nos criou mediante a evolução progressiva de várias espécies após um longe período de tempo?

Como disse Chesterton:

Se a evolução simplesmente significa que algo positivo chamado macaco transformou-se lentamente em algo positivo chamado homem, então ela é inofensiva para o mais ortodoxo; pois um Deus pessoal poderia muito bem criar coisas de modo lento ou rápido, especialmente se, como no caso do Deus cristão, ele estivesse situado fora do tempo.

Concluo, portanto, dizendo que temos boas razões teológicas para acreditarmos que a teoria da evolução das espécies é compatível com fé cristã bem como com a Bíblia – uma vez que se a interpretemos de forma coerente.

Se você, cristão ou ateu, discorda de minhas conclusões, sintam-se a vontade para escrever-me e apontar seus motivos. Até ver boas razões para mudar de opinião, sinto-me bastante justificado acreditando que as descobertas da ciência e a fé cristã podem muito bem viver em harmonia.


Eliel Vieira

OBRAS CONSULTADAS:

- BÍBLIA SAGRADA. Versão Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
- CHESTERTON, C. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
- COLLINS, Francis. A Linguagem de Deus. São Paulo: Editora Gente, 2007
- MCGRATH, Alister. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica. São Paulo: Shedd, 2005.

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quarta-feira, 8 de julho de 2009

Que Meu Poema Lhe Seja Agradável

Os salmos são especiais dentro dos livros que compõem a Bíblia. Quem nunca se maravilhou com algum salmo em especial? Eu, por exemplo, fico extasiado toda vez que leio o salmo 139, por toda a profundidade da grandeza de Deus narrada de forma apaixonada pelo autor. A verdade é que todo cristão aprecia algum (ou alguns) salmo específico, seja por se identificar com ele, seja por simplesmente achá-lo belo.

O destaque dos salmos dentre os livros da Bíblia está na característica textual deles. Os salmos foram escritos como poemas e reflexões por pessoas simples, nada mais. Por definição, os salmos são simples.

Além da simplicidade, os salmos foram escritos exclusivamente no intuito de louvor a Deus. Os salmistas se derramavam em arrependimento e em louvor quando escreviam a Deus. Esta, talvez, seja a característica mais marcante dos salmos em relação aos demais livros da Bíblia: eles foram escritos com o objetivo específico de louvar a Deus.

Nem todos os livros da Bíblia são assim. Todos os livros da Bíblia (exceto os salmos) tiveram como objetivo principal outra coisa além de louvar a Deus. Alguns destes objetivos foram: contar a história do povo hebreu (Juízes, Samuel, Reis, etc.), trazer advertência ao povo (livros dos profetas), mencionar as delícias do amor sexual entre um casal (Cantares de Salomão), refletir sobre a existência (Eclesiastes, Jó e Lamentações), contar a história de Jesus Cristo (Mateus, Marcos, Lucas e João), a história da igreja primitiva (Atos) e transmitir a doutrina cristã às igrejas antigas (cartas dos apóstolos).

Os salmos são diferentes. O objetivo principal deles é louvar a Deus de forma poética. É interessante observar que as palavras dos salmistas sempre fazem menção ao sol, à lua, às flores e também são carregados de antropomorfismos como “olhos de Deus” e “ouvidos de Deus”. Tudo no intuito de deixar o louvor a Deus mais poético.

Os salmistas não apenas queriam se manifestar em louvor a Deus, mas queriam se manifestar da forma mais bela possível. Percebe-se, porém, em alguns salmos, que os autores estavam tão preocupados em se derramar em arrependimento diante de Deus que pouco se preocuparam em usar palavras belas ou pomposas. Veja o salmo 51, por exemplo. Nele, Davi confessa a Deus seu arrependimento pelo mal que fez a Betseba e a Urias. Contudo, mesmo os salmos pouco “trabalhados” ainda encantam seus leitores pela sinceridade do autor.

Os salmos, portanto, são escritos diferentes e especiais dentro da Bíblia. São eles os únicos textos cujo objetivo principal é o louvor a Deus, seja de forma poética, seja de forma simples e sincera. Se há algum lugar onde devemos extrair as diretrizes que devem conduzir nosso louvor a Deus, portanto, este lugar é a leitura dos salmos.

Não sabe como louvar a Deus? Passe a ler os salmos.

Aliás, como seria agradável se os grupos de louvor desejassem fervorosamente que suas composições se assemelhassem mais com os salmos, não? Como seria bom se sinceridade, beleza e simplicidade regessem os compositores evangélicos atuais. Como seria bom se os músicos cristãos tratassem suas composições como louvor sincero a Deus, e não como mercadoria que se pode maquiar para vender com mais facilidade.

Em um de seus mais famosos e sinceros textos, o pastor Ricardo Gondim manifesta seu desencanto com a falta de beleza e sinceridade nas atuais músicas produzidas pelos músicos evangélicos:

Canso com a falta de beleza artística dos evangélicos. Há pouco compareci a um show de música evangélica só para sair arrasado. A musicalidade era medíocre, a poesia sofrível e, pior, percebia-se o interesse comercial por trás do evento. Quão diferente do dia em que me sentei na Sala São Paulo para ouvir a música que Johann Sebastian Bach (1685-1750) compôs sobre os últimos capítulos do Evangelho de São João. Sob a batuta do maestro, subimos o Gólgota. A sala se encheu de um encanto mágico já nos primeiros acordes; fechei os olhos e me senti em um templo. O maestro era um sacerdote e nós, a platéia, uma assembléia de adoradores. Não consegui conter minhas lágrimas nos movimentos dos violinos, dos oboés e das trompas. Aquela beleza não era deste mundo. Envoltos em mistério, transcendíamos a mecânica da vida e nos transportávamos para onde Deus habita. Minhas lágrimas naquele momento também vinham com pesar pelo distanciamento estético da atual cultura evangélica, contente com tão pouca beleza. (Fonte)

Realmente falta beleza nas músicas cristãs de atualmente. As músicas que conseguem demonstrar alguma espécie de beleza e originalidade são abafadas pela propaganda mercadológica que se cria em cima dela. Recentemente, por exemplo, um cantor compôs uma música baseada na passagem bíblica de Zaqueu e a árvore. A música contém uma letra, confesso, até bonita (retirando alguns excessos e apelos psicológicos presentes ela soaria a mim perfeitamente agradável). Porém, quem não consegue enxergar o forte apelo mercadológico desta canção? Ela é tocada em igrejas evangélicas até boates, bailes funk e centros de espiritismo. Até que ponto o autor da música a compôs de forma sincera sem pensar em “como ela vai vender?”.

Algumas pessoas podem dizer que eu me detendo demais em detalhes supérfluos ocorrentes no meio evangélico. Porém, que mal há em desejar que as composições evangélicas sejam ao menos sinceras (não precisam ser belas nem originais, apenas sinceras) como os salmos são?

O salmo 104 traz uma passagem muito bela onde o salmista exclama:

Cantarei ao Senhor enquanto eu viver, louvarei o meu Deus enquanto eu existir. Que meu poema lhe seja agradável; quanto a mim, eu me alegro com o Senhor”.

Achei muito interessante nesta passagem a preocupação do salmista com relação à sua reflexão. Para ter feito esta oração, o salmista certamente compôs o melhor que podia. Ou seja, ele elaborou o melhor que pôde para Deus e ainda se preocupou em pedir a Deus que se agrade do que foi composto.

Será que os compositores atuais dão o seu melhor ao compor músicas que – teoricamente – foram criadas para o louvor a Deus? Ou será que é a preocupação com as vendas que dita as regras durante as composições evangélicas? Voltando estas perguntas a nós mesmos e a nosso louvor: Será que nos preocupamos em tributar o melhor a Deus quando vamos louvá-Lo? Ou será que cantamos o que cantamos apenas por cantar?

Já a alguns meses estas questões me perturbam e, então, eu fiz um pacto com Deus. Partiu de mim, ninguém me incentivou. Combinei com Deus que não cantaria mais músicas que mencionam as palavras “milagres”, “promessa”, “chuva” e “prosperidade”. Eu sei que simplesmente não cantaria as músicas com menções a estas palavras com um coração sincero e em louvor.

Durante os cultos qualquer pessoa pode observar que boa parte dos membros cantam as músicas simplesmente por cantar, como se estivesse cumprindo não mais que uma obrigação. Uns cantam olhando para o teto, outros procurando caneta na bolsa, outros lendo a Bíblia, outros olhando para o relógio, outros fazendo cara de mal cerrando fortemente os olhos, como se estivesse brigando consigo mesmo para acreditar que aquilo que está sendo cantado é verdadeiro, enfim, pessoas que cantam por cantar existem aos montes em todos os cultos.

Decidi então que durante o período de louvor seria muito mais proveitoso à minha vida espiritual – e seria um louvor muito mais verdadeiro a Deus – refletir comigo mesmo sobre a mensagem da canção e como anda minha vida. Ao invés de mentir cantando que sou apaixonado por Deus, penso que é muito mais proveitoso refletir comigo mesmo sobre como isso pode ser realidade em minha vida. Ao invés de mentir dizendo que não há bens maiores que Deus em minha vida, acho que louvo a Deus muito mais refletindo sobre quais coisas devo abandonar para que Deus possa, de fato, tornar o centro de minha vida.

Enfim, acho que refletir sobre a profundidade de louvar a Deus, é louvá-lo com muito mais carinho e sinceridade.

Que Deus considere esta reflexão agradável.

A Ele todo o louvor!


Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

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quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Validade das Especulações Acerca das Questões Obscuras da Fé

Minha namorada confessou a mim que tem preocupações sobre as minhas especulações acerca das questões “difíceis de entender” que cercam nossa existência e em particular a fé cristã que professamos. Para ela, uma atenção demasiada nestas questões, pode me conduzir à não crença em Deus, o que, na visão do evangélico comum, é o pior de todos os males.

Esta não foi a primeira vez que ouço esta advertência por parte de pessoas próximas a mim. Tanto minha mãe quanto meu pai já conversaram comigo em momentos diferentes confessando a mesma preocupação: que meu “diferentismo” um dia venha me afastar de Deus.

Sendo assim, decidi escrever um texto em defesa de mim mesmo. Desde os tempos helênicos, sempre foi garantido a qualquer acusado – por mais absurdo que tenha sido o crime praticado – o direito de se defender. Ainda nos dias de hoje é assim: uma pessoa pode ser pega fazendo o ato mais bárbaro do mundo – digamos, matando a pauladas um pequeno bebê – mesmo assim, no julgamento, será garantido a ela o direito de se defender. Vou então fazer o uso do direito que me é garantido para defender a validade das especulações sobre as questões que cercam nossa fé.

Primeiramente, as três exortações que recebi (de meus pais e de minha namorada) me ajudaram a perceber que o problema não está tanto nas especulações que faço em relações às questões obscuradas da fé, mas no fato destas especulações não serem “comuns” à prática litúrgica evangélica. Estou plenamente certo de que se “questionar a fé” fosse uma prática comum, ninguém estaria me censurando.

Como eu cheguei a esta conclusão?

Simples. As três pessoas que me exortaram, apontaram outras preocupações além das minhas especulações, e estas preocupações recaem exatamente em “peculiaridades” de meu jeito de ser: minha mãe se mostrou preocupada com minhas especulações sobre a fé e sobre as músicas de Heavy Metal que eu escuto; meu pai se mostrou preocupado com minhas especulações polêmicas, bem como com o inconformismo que eu sentia na igreja que eu freqüentava; já minha namorada, se mostrou preocupada com as especulações que faço e também com meu jeito crítico e polêmico de ser.

Ou seja, o meu problema não é, necessariamente, que eu me deleito e faço especulações sobre as questões polêmicas que envolvem a fé. Meu problema é ser diferente, é ser distante do convencional, pois tudo o que é diferente, preocupa.

Longe de querer me comparar ao meu mestre, mas, com Jesus foi do mesmo jeito. Por que Jesus foi perseguido senão porque Ele era diferente do convencional judáico de seu tempo? As mulheres não eram valorizadas na cultura judaica? Jesus possuía seguidoras dentre seus discípulos. Era proibido aos judeus se juntarem a cobradores de impostos e publicanos? Jesus comia à mesa com eles. Era totalmente reprovável se aproximar de leprosos? Jesus os abraçava. Descendentes diretos de Davi não precisavam pagar impostos ao Império Romano? Jesus pagava para dar exemplo. Não podia fazer nada no sábado? Jesus fazia tudo o que queria como se fosse um dia comum. Os samaritanos não eram pessoas de bem com quem os judeus podiam de se relacionar? Jesus ia a eles e lhes transmitia a mesma mensagem que dava aos judeus.

Jesus foi totalmente diferente do que os judeus esperavam do Messias que deveria vir (para eles, o Messias ainda virá) e, por ser diferente do convencional, Jesus foi perseguido, traído e morto cruelmente.

Está enraizada em algum lugar de nosso senso comum a idéia de que o eventual, o pragmático, e o habitual são sempre válidos. Um dos jargões mais populares do futebol é o “em time que está ganhando, não se mexe”. Recentemente eu escrevi um texto refletindo sobre a razão pela qual nós atribuímos substantivos e adjetivos masculinos a Deus. Dentre as várias respostas positivas que recebi no Orkut, uma das respostas foi algo como “se sempre chamados Deus de ‘Pai’ e se ninguém nunca se preocupou com isso, por que ficar levantando estas questões?”.

As pessoas não querem abandonar o pragmatismo, até mesmo nas suas religiões. Não é apenas no catolicismo – com seus sete sacramentos – ou no espiritismo – na prática freqüente da caridade – que a salvação é oferecida em troca da realização de práticas ou passos. No evangelicalismo também isto é observado com muita facilidade. Quem nunca viu um livro evangélico de “7 passos para X”, ou “77 maneiras de obter Y”. Ou, se você mora perto de (ou freqüenta) uma igreja evangélica, quem nunca viu uma faixa anunciando as campanhas das sete orações, ou dos sete elos da corrente da prosperidade, etc.?

As pessoas são habituadas com o prático, com “o que funciona”, com modelos. Se modo X de evangelização tem mostrado resultados, porque gastar tempo pensando em outra? Se temos compreendido bem a Bíblia com a maneira Y de interpretação, por que levar em consideração outra maneira?

As críticas que recebi das três pessoas que mais amo, portanto, surgiram a partir de uma certeza do senso comum que é comum a todas as pessoas, em todas as questões. Confesso que até mesmo eu sou pragmático em algumas (muitas) questões.

Proponho, para continuidade deste texto, uma questão-chave: a prática de se especular sobre as questões polêmicas que envolvem nossa fé, é valida?

Segundo minha namorada, em sua exortação a mim, não é proveitoso gastar tempo lendo e pensando sobre questões que, definitivamente, não possuem respostas e que só servem para dar nós em nossa cabeça. Sua grande preocupação é de que uma atenção muito grande a estas especulações pode me afastar de Deus, que deve ser o centro de minhas atenções.

Enquanto escrevia este texto, veio a mim o exemplo da Novalgina. Trata-se talvez do remédio mais popular em nosso país e serve, dentre outras aplicações, para regularizar a temperatura corporal quando estamos com febre. Apesar de milhões de pessoas fazerem uso deste medicamento, uma parcela muito pequena da população sabe como ele de fato age no nosso organismo. O fato de ninguém saber como ele funciona, porém, não o torna menos eficaz. Ele faz mesmo efeito tanto naquele que conhece seu funcionamento no corpo humano, como naquele – como eu – que não tem a mínima idéia de como ele consegue regular a temperatura de nosso corpo. Podemos usar como exemplo também o Sol. Ele vai jogar sua luz do mesmo modo sobre as pessoas que sabem que o astro brilha por causa da queima de hidrogênio, quanto para quem não tem a mínima idéia do que seja hidrogênio.

Os exemplos acima são análogos à fé. Saber se Deus é do gênero masculino ou não, ou se os sete dias de Gênesis são literais ou simbólicos, ou se Jesus era rico ou pobre não muda em nada a nossa fé. Deus não vai ser mais benéfico a uma pessoa que conseguiu entender o mistério da Santíssima Trindade (1 + 1 + 1 = 1) do que seria a quem não faz a mínima idéia de como isso pode ser possível.

Da mesma forma como uma pessoa pode fazer uso da Novalgina sem saber como ela funciona, uma pessoa pode usufruir de Deus sem necessariamente ter respostas para as questões que cercam toda a fé.

Você não pode, porém, dizer que estudar as questões que cercam a fé seja uma tarefa inválida, da mesma forma que você não pode dizer a uma pessoa que decide estudar Química que ela é uma pessoa que “perde seu tempo”.

Imagine se toda criança que tem um desejo apaixonado de estudar Química ouvisse o seguinte incentivo de seus pais:

- Filho, não perca tempo com isso. Você vai se dar muito melhor na vida fazendo um curso mais prático (e que paga mais) como Administração ou Ciências Contábeis. Deixa as questões complicadas da vida para outras pessoas se preocuparem. Eles estudam e você se beneficia comprando os remédios necessários quando precisar.

Se todos os pais dissessem isso aos seus filhos, não teríamos nenhum pesquisador e a ciência não teria feito tantas descobertas importantes quanto ela fez. Se uma pessoa deseja estudar química porque a Novalgina o fascina, ou se uma pessoa deseja estudar astronomia porque ela quer entender como o sol funciona, todas desejam boas coisas. Acredito, portanto, que da mesma forma, eu estou imerso em uma boa empreitada estudando e refletindo sobre as questões que rondam nossa existência e nossa fé.

Junte a isso também o fato de que a Bíblia recomenda que pensemos sobre estas questões. Em I Pe 3:15, Pedro diz que devemos estar sempre preparamos para apresentar as razões da esperança que nós temos. Ora, isto implica necessariamente que tenhamos conhecimento suficiente da fé que temos.

Em certo episódio do seriado Chaves, acontece em sala de aula um diálogo entre o Professor Girafales e a aluna Chiquinha:

- Chiquinha, o que é necessário para se ensinar um cão?

- Saber mais que o cachorro, ora!

Óbvio, não!? Porém, como vamos ter capacidade de explicar ao mundo sobre nossa fé se nós não podemos estudar e refletir sobre as questões polêmicas e confrontadoras que a cercam? Para ensinar algo a alguém, temos que - no mínimo - conhecer mais que esse alguém naquilo que se pretende ensinar.

Claro, não afirmo aqui que todos devem a partir de amanhã começar a perder os cabelos se perguntando por que um Deus bom permite a existência de mal no mundo ou qualquer outra questão polêmica que cerca a fé. De acordo com a Bíblia, Deus separou seus filhos conforme os dons que cada um tem (dons que Ele mesmo concedeu a cada um conforme a Sua vontade). Eu, por exemplo, não tenho o dom de cantar (que, diga-se de passagem, minha namorada tem de sobra). Meu dom é de questionar, de refletir, de pensar criticamente, de escrever... não posso enterrar meu dom. Não posso negar o que sou.

Você não tem obrigação de se preocupar com a questão polêmica X, mas, algum dia, um amigo seu de trabalho ou de escola pode levantar esta mesma polêmica X a você e, convenhamos, seria muito proveitoso poder chegar em sua casa, pegar um livro de algum cristão que tenha estudado exaustivamente a questão, ler, anotar alguns pontos e, no dia seguinte, responder satisfatoriamente a seu amigo, não é?

Chego à conclusão aqui, portanto, que especular sobre as questões que envolvem nossa existência e nossa fé, é uma tarefa válida e até necessária a algumas pessoas. A própria saúde de nossa fé exige que estejamos sempre ligados sobre as dúvidas que são levantadas frequentemente em relação à fé, afinal, Deus disse que o povo dele morre porque lhe falta conhecimento.

Desejo terminar este texto com um pequeno comentário sobre a maior preocupação de minha namorada: a de que estas especulações me afastariam a cada vez mais de Deus.

Bem, falando de modo geral, eu desconheço a história de algum cristão que tenha começado a estudar demais e tenha deixado de acreditar e confiar em Deus. Conheço sim, diversas histórias de pessoas que estudaram muito e começaram a sentir nojo das coisas absurdas que as pessoas fazem em nome de Deus nas igrejas (eu sou uma destas). Em contrapartida, conheço também diversas histórias de ateus e céticos que passaram a acreditar em Deus depois de analisarem a fundo as questões que assombram a humanidade. Mas, cristão que tenha abandonado a fé após o estudo, sinceramente, não conheço nenhum.

Agora, falando de forma pessoal, posso dizer que sinto certo receio em alguns momentos de um dia me extraviar ou se, de fato, não já me extraviei da fé, e aí me apego mais firmemente à mão protetora de Deus. O fundamento de minha fé é Cristo, e é na Rocha Inabalável que um cristão deve estar. Se minha fé estivesse fundamentada em mim mesmo, vacilante como sou, uma hora dessas eu nem sei o que estaria fazendo. Cristo é o fundamento. Ele também é um grande conforto intelectual que tenho: apesar de não dar imediatamente respostas exatas a todas as perguntas que temos – a verdade é que a grande maioria de nossas dúvidas serão respondidas na eternidade – Cristo dá sentido às perguntas e às dúvidas. E este sentido é um grande conforto (e incentivo) para aquele que busca respostas.

Em um mundo sem Deus, aquele que faz perguntas tem de ser contentar com a verdade de que ele jamais terá as respostas, pois existirá apenas um vazio após a morte. Já em um mundo com Cristo, aquele que pergunta sabe que, mesmo em meio à ignorância do tempo presente, um dia as respostas virão.

Portanto, de forma sincera, a especulação sobre as perguntas que cercam nossa existência, me leva de alguma forma para mais perto de Deus. Tento entendê-Lo e acredito que Ele olha para mim e dá umas risadas pensando “olha que coisa mais absurda o que esse menino está pensando” ou “ele está pensando corretamente”. É como disse Rubem Alves, a questão não é pensar de forma certa ou errada, afinal, quem sabe dizer o que é certo ou o que é errado? A questão, diz Alves, é simplesmente pensar, voar nas asas do pensamento.

Estas especulações, claro, às vezes geram desconforto, tristeza, solidão, desespero... porém, estamos sujeitos a estas coisas em todas as áreas de nossa vida e, a verdade, é que no fundo no fundo, todo pensador deseja ser confrontado por estas coisas, vencê-las e depois ensinar aos outros a como não teme-las.

E assim vamos vivendo...


Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

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