sexta-feira, 26 de junho de 2009

Dúvida: um pecado?

Ontem assisti um comercial de TV que terminava com a seguinte frase: “não são as respostas que movem o mundo, mas as perguntas”. Dormi refletindo sobre esta frase e hoje decidi escrever uma reflexão sobre o papel da “dúvida” na fé.

A dúvida, que é muito valorizada nas ciências investigativas – afinal, no dia que todas as dúvidas forem respondidas, não haverá mais ciência –, é vista com receio nos círculos religiosos. Percebe-se facilmente como as pessoas de fé têm pavor em relação às dúvidas.

Alguns cristãos tratam a dúvida como uma fraqueza; outros como um mal que entrou no mundo por causa do pecado do homem; e outros a tratam como o maior mal existente no mundo. Todos (com pouquíssimas exceções) concordam, porém, que a dúvida é algo prejudicial à vida do cristão. O discurso triunfalista evangélico exige que o crente não tenha dúvidas e, do lado católico romano, a infalibilidade da palavra do sucessor de São Pedro idem.

Por várias vezes eu fui censurado na igreja por ser sincero e dizer quais dúvidas eu tinha. Já duvidei da honestidade de alguns pastores (e fui censurado); já duvidei da veracidade de algumas profecias mencionadas na congregação (e fui censurado); já duvidei da sinceridade de algumas pessoas (e fui censurado); já duvidei do pastor que afirmou ter visto galinhas batizadas pelo Espírito Santo (veja aqui) (e fui censurado); já levantei dúvidas sobre alguns pontos da doutrina cristã (e fui censurado). Enfim, a maneira mais fácil de ser censurado na igreja cristã é levantar dúvidas sobre alguma prática aceita por seus “superiores” ou dizer que se está com dúvidas em relação a algum assunto.

Acho necessário deixar dois pontos bem claros antes de prosseguir: (1) não defendo que as pessoas devem ser voluntariamente ignorantes (ou seja, desejar sempre ter dúvidas sobre tudo) em relação aos assuntos que cercam nossa existência e (2) não defendo que as pessoas devem colocar a dúvida como modelo de caráter, em outras palavras, se tornarem céticas em relação às questões que nos envolvem.

O que eu pretendo defender neste texto é (1) a validade da dúvida na busca pelo conhecimento e na filtragem das informações que chegam a nós e (2) o direito que todos nós temos de ter dúvidas e de expressá-las.


A Validade da Dúvida


Todos nós possuímos um impulso inato de estabelecer dúvidas sobre qualquer coisa. Se nós não tivéssemos a capacidade e o impulso de duvidar, acreditaríamos em tudo o que tentasse se acomodar em nosso entendimento.

Se eu disser a você que a primeira coisa que fiz hoje quando acordei foi botar um ovo você certamente não acreditará em mim: você duvidará. Você pensará (se é que você vai refletir em alguma coisa antes de duvidar de mim) assim: “Bem, somente galinhas botam ovos e nunca ouvi falar de um homem que tenha botado um ovo. Não há razões, portanto, para acreditar que ele esteja falando a verdade”.

Se você possui a capacidade de duvidar da minha afirmação de que eu botei um ovo hoje pela manhã, e se você igualmente pensa que agiu bem duvidando de minha afirmação, acho bastante razoável concluir que nós possuímos uma capacidade natural de duvidar e que essa capacidade de duvidar não é algo prejudicial como você costuma ouvir na igreja que você freqüenta.

Levantar dúvidas sobre uma idéia que pretende se acomodar em nosso entendimento é algo benéfico ao nosso próprio entendimento. A dúvida age como um filtro que retém as más informações e libera as boas informações para que elas se assentem em nossa mente. Na Bíblia, em Atos 17, os cristãos da cidade de Beréia foram elogiados exatamente porque eles analisavam todos os ensinamentos dos apóstolos à luz das Escrituras, ou seja, eles duvidavam inicialmente de tudo e acreditavam apenas naquilo que era de fato embasado nos escritos sagrados.

A dúvida é benéfica, portanto, no sentido de que filtra todas as informações que chegam até nós diariamente. Sem a dúvida, jamais poderíamos duvidar de que 2 + 2 = 3947. Se duvidamos do resultado desta conta, e se esta dúvida é boa, é porque a dúvida age de forma benéfica à nós.

A dúvida é benéfica em outro sentido: ela nos impulsiona à busca do conhecimento.

Pense comigo: imagine como seria sem graça assistir a uma partida de futebol sabendo exatamente como as coisas vão acontecer. Todos concordam que o futebol é gostoso de assistir exatamente porque não se sabe o que vai acontecer, o futebol é gostoso de assistir porque temos dúvida do que de fato vai acontecer durante a partida. Uma maneira fácil de irritar alguém é ir a uma locadora de filmes e contar o final do filme para os que estão com o DVD na mão. Se não há dúvida sobre o que vem à frente, não tem graça assistir ao filme.

Toda pesquisa já feita pelo ser humano (seja científica, seja filosófica, seja teológica) foi feita a partir de uma dúvida, ou várias dúvidas. Por que as pessoas envelhecem? Por que os seres humanos possuem semelhanças com os macacos? Por que o céu é azul? O que Deus fazia antes de criar o mundo? Por que Deus mandou Jesus para morrer se Ele poderia simplesmente salvar a humanidade sem sacrifício algum? Por que um Deus bom manda pessoas para o inferno?

Enfim, toda a produção intelectual do mundo veio à existência porque as pessoas tinham dúvidas. Se não houvesse dúvidas, não existiria conhecimento.

Concluo, portanto, que o duvidar é totalmente benéfico ao ser humano pelas duas razões apresentadas acima. Vou agora defender o direito que as pessoas têm de terem dúvidas.


O Direito de Duvidar


Outro ponto que gostaria de argumentar neste texto é que todos nós temos direito de ter dúvidas. Ao contrário do que os evangélicos dizem, ter dúvidas (principalmente em assuntos espirituais) é absolutamente normal. Mesmo porque, até onde eu sei, o único ser Onisciente (ou seja, que sabe todas as coisas) é Deus.

A dúvida não é o contrário da fé, ela é intrinsecamente relacionada à fé. Ter fé é confiar em Deus mesmo diante das dúvidas existentes. Para entender melhor meu ponto, imagine o sol. Ninguém diz que tem “fé” na existência do sol, afinal, ele está aí em cima e todos podem vê-lo na hora que bem quiser. Você só pode ter fé em algo que não está absolutamente explícito, pois a fé é a ação de confiar em algo. Por isso a Bíblia define fé como “prova das coisas que não se vêem” (Hebreus 11:1), ou seja, uma prova daquilo que não se tem certeza, uma prova daquilo que se tem dúvida.

Uma pessoa pode muito bem ter fé em Deus e ter dúvidas sobre os atributos de Deus, ou sobre a ação de Deus no mundo. Por exemplo, é justo ter dúvidas se Deus realiza milagres nos dias de hoje na mesma freqüência com que ele realizava no passado; é justo se perguntar por que Deus permite a existência de tanto mal no mundo; é justo perguntar por que existe um lugar como o inferno.

O nono capítulo do evangelho segundo Marcos traz uma história muito interessante de um pai que levou seu filho até Jesus para que ele o curasse. Quando Jesus disse ao pai que seu filho poderia ser curado se o pai cresse, ele assim respondeu:

Creio, ajuda-me na minha incredulidade” (Marcos 9:24)

Ou seja, o pai na verdade queria acreditar que seu filho poderia ser curado da doença que ele tinha desde a infância, mas tinha dúvidas. Acreditar mesmo, ele não acreditava. Em outras palavras, o pai tinha fé, mas tinha dúvidas. Ele foi muito sincero ao admitir que mesmo vendo Jesus realizar tantos atos ainda tinha dúvidas. Jesus, então, a despeito da incredulidade do pai, curou a criança.

Sou uma pessoa de fé, confio e tenho esperança em Deus. Porém, tenho dúvidas. Alguns pontos da fé ainda são obscuros a mim mesmo após ler tantos livros. Aliás, a verdade é que quanto mais leio mais dúvidas surgem.

Porém, não tenho vergonha das minhas dúvidas nem de dizer que as tenho. Antes ser um duvidoso sincero do que um duvidoso que se esconde atrás de respostas pré-fabricadas formuladas por outros. Dúvidas todos têm, a questão é se você sinceramente admite que as tem ou se você tem vergonha delas.

Termino este texto com as profundas palavras de Madeleine L’Engle:

Os que acham que crêem em Deus, porém sem paixão no coração, sem aflição de mente, sem incerteza, sem dúvida e até mesmo, às vezes, sem desespero, crêem somente na idéia de Deus, e não no próprio Deus.

Talvez você tenha vergonha das dúvidas porque te ensinaram que elas são uma fraqueza ou um pecado, mas não são.



Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

Creative Commons License
DESCONSTRUINDO por Eliel Vieira está licenciado sob Creative Commons Attribution.


1 comentários:

Danilo Fernandes 9 de Julho de 2009 22:15  

Eliel,

Voce colocou a questão muito bem.

Em relação ao que nos é dito sobre a Palavra de Deus, dúvida não é opção, é mandamento. Como voce bem disse em relação aos Bereianos.

Vai mais, devemos inclusive julgar, leia aqui

http://genizah-virtual.blogspot.com/2009/07/devemos-julgar.html

Quanto a Fé, vale lembrar o Jesus disse a Tomé e o que Jesus disse a cerca dos mistérios que só ao Pai caberia saber ou revelar.

Por lado, somos bem-aventurados pois cremos sem ver (diante da dúvida). Por outro, somos convocados a celebrar mistérios - como muitos que nos são apresentados!

Gostei de seu blog e vou-segui-lo.

Aproveito para apresentar o meu blog, o Genizah, e recomendar uma visita.

Graça e Paz

Danilo

http://genizah-virtual.blogspot.com/

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