domingo, 6 de setembro de 2009

Existe Sentido Para Nossa Existência?

Uma das questões mais abordadas nos debates entre cristãos e ateus é sobre o sentido da existência de todas as coisas. Tudo o que aconteceu, acontece ou acontecerá neste universo, possui um sentido objetivo de ser? Existe algo que norteia objetivamente nossas ações e decisões? Ou não? Devemos responder sobre nossos atos? Se sim, a quem ou a o que devemos responder? Se não, por que no final das contas agimos como se tivéssemos que sim?

O debate é geralmente travado entre cristãos e ateus. Claro, vários representantes de outras “vertentes” também se interessam com este debate, mas, geralmente, cristãos e ateus são os protagonistas deste debate. De um lado, os cristãos dizem que se existe algo que possamos identificar como “sentido” na existência, Deus necessariamente deve existir; do outro lado, os ateus se dividem em duas posições sobre a mesma questão: (a) que os valores morais e o “sentido” existem, mas que a existência destas coisas não implica necessariamente na existência de Deus; e (b) que não existem valores morais objetivos e nem sentido para o universo uma vez que não existe nenhum Deus ou ser que regulamente sobre estas coisas.

O ateu Sam Harris parece pertencer ao primeiro grupo (aqueles que acreditam que existe sentido para a existência, mas que isto não implica necessariamente na existência de Deus). Em suas palavras:

1) Ateus acreditam que a vida não tem sentido – Pelo contrário: são os religiosos que se preocupam freqüentemente com a falta de sentido na vida e imaginam que ela só pode ser redimida pela promessa da felicidade eterna além da vida. Ateus tendem a ser bastante seguros quanto ao valor da vida. A vida é imbuída de sentido ao ser vivida de modo real e completo. Nossas relações com aqueles que amamos têm sentido agora; não precisam durar para sempre para tê-lo. Ateus tendem a achar que este medo da insignificância é... bem... insignificante. (fonte)

A segunda posição ateísta, defendida por ateus como Bertrand Russell e Nietszche, é também aceita por – para usarmos um exemplo tupiniquim – André Díspore Cancian, fundador e mantenedor do site Ateus.net, um dos maiores portais ateístas brasileiros na rede. Para André,

Quanto à moral, sou um amoralista; isso não significa que sou amoral, mas somente que defendo a inexistência de valores universais (...). Na prática, minha moral é a simples crueza de um egoísmo racional e utilitarista. Adotei a tática que me parece mais eficiente e prática para promover meu bem-estar, que consiste nesta máxima: tudo de melhor para mim e tão-somente. E para os outros? Para os outros apenas faço e desejo o bem se, em troca, me forem úteis também de algum modo; diretamente, indiretamente ou apenas potencialmente (...). No meu ponto de vista, tudo isso que estamos vivendo não passa de um resultado mecânico de fatores físicos impessoais que culminaram, através de entidades informacionais auto-replicantes – no nosso caso, o DNA –, em nossa existência enquanto máquinas, portanto sem livre-arbítrio, conscientes de si mesmas e tendo, por sua própria natureza, o objetivo da perpetuação, que por sua vez não tem objetivo algum (...). Por isso, não penso em nossa vida como uma grande maldição, mas apenas como um grande vazio onde tudo é efêmero e sem significado; mas, por isso mesmo, livre. Não poderia negar, todavia, que minha visão pessoal a respeito da realidade é um tanto funesta; mas este é meu posicionamento individual, e não tenho a menor intenção de generalizar minhas conclusões e impressões pessoais e impô-las a outrem. Apenas me espanta que a vida seja tão insignificante, tão lúgubre, durante a qual guardamos tão poucas memórias dignas de um espontâneo sorriso solitário, entre quatro paredes. (fonte)

A pergunta base aqui, portanto, é a seguinte: o universo possui sentido?

Para os cristãos (também para as demais religiões teístas e o hinduísmo), existe sim um sentido para a existência. Mesmo que não consigamos responder à questão “por que estamos aqui”, todos, no fundo, sabem que existe algum objetivo para nossa existência. No seio teísta, portanto, não há discordância alguma sobre a questão da existência de sentido para as coisas. Para aqueles que acreditam em Deus, existimos porque em algum tempo um ser infinito, absoluto e princípio explicativo de todas as coisas decidiu criar o que conhecemos como “universo”. Também, os crentes em Deus concordam que Deus nos criou para que nos relacionássemos com Ele.

Este texto, portanto, não vai focar a opinião cristã sobre a questão da existência de sentido para nossa existência. Até mesmo os ateus concordam que, se Deus existe, certamente existe um sentido para tudo o que é existente relacionado a Ele. A questão aqui é: se Deus não existe, existe sentido para as coisas existentes?

Como já foi dito, as opiniões ateístas se concentram em variações de dois extremos: a) que os valores morais e o “sentido” existem, mas que a existência destas coisas não implica necessariamente na existência de Deus; e (b) que não existem valores morais objetivos e nem sentido para o universo uma vez que não existe nenhum Deus ou ser que regulamente sobre estas coisas.

Obviamente, as duas posições não podem estar corretas ao mesmo tempo. Podemos dizer que ambas são possíveis em um “mundo possível”, mas não podemos dizer que ambas podem existir ao mesmo tempo em um mesmo “mundo possível”. Ou o universo possui ou ele não possui sentido de ser. Nenhum relativismo pode ser aplicado aqui sem que negue a lei lógica da não-contradição.

Na belíssima obra de Mary Shelley, Victor Frankenstein – um jovem muito curioso que decidiu estudar ciências biológicas e que, como resultado de sua curiosidade e de seus estudos, criou um ser vivo monstruoso que destruiu toda sua vida posteriormente – disse algo que pode nos ajudar na tarefa de responder à questão-chave deste texto. Ele disse:

“Para examinarmos as causas da vida, devemos começar pela morte”

Claro que Victor Frankenstein não estava ali dissertando sobre o sentido da vida, ou sobre a existência de valores morais objetivos que regulamentam nossa existência. Mas, a frase de Frankenstein pode muito bem ser aplicada como base para nossa resposta sobre a questão do sentido para o universo.

O universo tem sentido? Usando o princípio proposto por Frankenstein, devemos observar a “morte” – o fim de todas as coisas – antes de responder. Só saberemos se o universo tem algo sentido de ser se seu fim apresentar algum sentido objetivo que dependa de nossas ações presentes, de forma que, caso nossas práticas não condigam com o suposto sentido para o qual ele existe, ele não atinja este sentido.

Vou explicar esta questão com um exemplo mais prático: todo o mundo está preocupado com o desperdício de água. Campanhas e mais campanhas educativas são promovidas para reeducar as pessoas em relação ao uso consciente da água. Por que? Ora, porque a água é um recuso natural limitado que, se não usamos com prudência, não teremos no futuro. Se os reservatórios de água fossem ilimitados e jamais houvesse alguma ameaça de não se ter água no futuro, não haveria preocupações, nem racionamento, nem campanhas educativas sobre consumo consciente. As campanhas sobre consumo de água possuem, portanto, sentido de ser: as pessoas olharam para a “morte”, ou seja, olharam para o futuro da Terra sem água disponível e perceberam: precisamos mudar nossos hábitos, senão nossos filhos não terão o que beber no futuro.

Nossos filhos terão ou não água disponível no futuro se nós regulamentarmos com prudência nosso consumo. Nossas ações do presente vão interferir no futuro, portanto, a preocupação com o consumo de água possui um sentido. Imagine agora dois quadros ilusórios: (i) que nossos recursos fossem ilimitados independente de nossos atos; e (ii) que não tivéssemos recursos independentemente de nossos atos. Ora, em ambos os casos as campanhas relacionadas ao bom uso da água não teriam sentido algum. No caso (i) se consumíssemos 2 litros ou 2 milhões de litros de água por dia, não alteraríamos em nada a quantidade de água no futuro, pois ela seria um recurso ilimitado. Um exemplo para o caso (ii) seria, por exemplo, nossas ações em relação a espécies animais já extintas. Ora, nenhum cuidado (ou falta de cuidado) nosso em relação à natureza jamais fará com que um dinossauro (ou qualquer espécie já extinta) volte a existir.

Sendo assim, se quisermos saber se há sentido para algo, devemos olhar para o fim deste algo. Nossa existência neste universo possui sentido, uma vez que não existe Deus? Para sabermos a resposta devemos olhar para o fim do universo – sem Deus – e ver se, à luz deste fim, nossa existência possui algum sentido ou não.

E é aqui que os ateus se enrolam. Analisando esta questão, William Lane Craig diz:

Os seres humanos são apenas subprodutos acidentais da natureza que se desenvolveram em tempos relativamente recentes, a partir de uma partícula de poeira infinitesimal perdida em algum lugar de um universo hostil e sem mente, fadado a perecer, individual e coletivamente, em um período de tempo muito curto. (CRAIG, W. in: Ensaios Apologéticos - Editora Hagons, p. 159)

Ora, se não há Deus, não apenas os seres humanos, mas também o próprio universo se trata de apenas um acidente sem valor e sem propósito que, a despeito do que fizermos ou não fizermos, está condenado a um fim, onde tudo que existiu (seja bom, seja mal, vai desaparecer). Em um mundo sem Deus, o universo não tem sentido objetivo, aliás, nem mesmo a existência tem sentido. Se todas as pessoas forem más, a raça humana e o universo vão desaparecer algum dia e, se todas as pessoas forem as melhores possíveis, também. Em um mundo sem Deus, tanto os “Gandhi” quanto os “Hitler” que passaram por aqui terão o mesmo fim. Estuprar uma criança ou alimentá-la não faz diferença em mundo sem Deus, afinal, qualquer que seja sua atitude, ela não influirá no “fim” que o universo está predestinado a ter.

As palavras de André Cancián, citadas mais acima, são duras e secas, mas profundamente verdadeiras. Se não existe algo que fundamente e “regulamente” aquilo que chamamos de “moralmente correto”, por que raios deveríamos acreditar que tais padrões morais existem? Por que estupro é algo moralmente incorreto na visão de mundo ateísta? “Por que é algo que prejudica o violentado”, alguém pode responder. Mas, porque “não prejudicar o próximo” é algo moralmente correto? O que fundamenta esta moralidade? O que a regulamenta, caso alguém não a pratique? E, além do mais, por que deveria eu me preocupar com meus atos uma vez que não há nada que eu possa fazer para alterar meu destino (que é desaparecer e não levar seque um mínimo pensamento comigo para a morte) e nem o destino do universo (implodir em si mesmo – o big crunch, como dizem alguns cosmólogos – e destruir tudo o que existiu, seja bom, seja ruim).

Se Deus não existe, nada do que fizermos é objetivamente correto ou errado. Nada é bom ou ruim relacionado ao “todo” do universo. Como disse Cancián, a vida é um grande vazio, onde tudo é efêmero, sem significado, sem sentido.

Agora, porém, pergunte a si mesmo: existe sentido para as coisas? A vida vale algo? Existe sentido em travar debates sobre a existência de Deus? Por quê? Por que devemos ser seres racionais? O que você ganha sendo uma pessoa racional em relação a aquele que não é? Em relação ao fim, quem agiu melhor: alguém que depositou toda sua vida no estudo da ciência ou aquela que ficou em casa jogando vídeo-game?O universo tem sentido? Em que sentido vale à pena amar? Qual é o sentido da vida? Por que vale a pena conhecermos a nós mesmos?

Estas são as perguntas pelo ser humano desde que ele se entende como humano. Elas têm levado as pessoas ao longo dos séculos a acreditar que existe algo que fundamenta o sentido de nossa existência, o que chamamos Deus. Porém, diferentemente do que Feuerbach propôs no século XIX e que Sam Harris sugeriu timidamente na citação no início deste texto, o fato de desejarmos Deus e de este desejo estar intimamente relacionado com a questão do sentido do universo não significa que criamos Deus para satisfazer este desejo de “sentido”. O fato de eu ter desejado amar uma pessoa quando era adolescente não torna o amor que sinto atualmente pela minha namorada irreal. Algumas vezes, sim, criamos objetos e pensamentos a partir de nossos desejos, mas o fato de desejarmos um objeto não torna a existência deste objeto irreal. Em termos lógicos:

O fato de P -> Q de maneira alguma significa que Q -> P.

As perguntas sobre sentido ainda persistem para o ateu. Ele precisa responder a todas estas questões e prover algo que fundamente o sentimento de “sentido” que temos em relação à nossa existência e ao universo antes de dizer, pretensiosamente, que não existe Deus. Na ausência de uma explicação convincente por parte dos ateus em relação ao sentido do universo, sinto-me completamente nos meus direitos racionais em continuar acreditando que a explicação “Deus” é a melhor que temos em relação à fundamentação do sentido e dos valores morais no universo.


Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

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3 comentários:

Glauber Ataide 11 de Setembro de 2009 08:45  

É interessante notar que sempre que falamos sobre o sentido da existência, nos referimos ao sentido da existência do homem apenas. Mas aqui eu replico uma pergunta elaborada por Freud: qual o sentido da vida dos animais?

Glauber Ataide 11 de Setembro de 2009 08:50  

Quanto ao apelo à transcendência para explicar os valores morais, eu também já havia pensado algo sobre o tema neste link: Moralidade sem Deus é possível?

Muitos outros questionamentos sobre a necessidade de Deus para o sentido da vida se encontram analisados nas páginas de Nietzsche, para quem o Cristianismo é pior forma de anti-natureza, já que sacrifica a vida por causa de um sentido que só existe no além.

Gregory Gaboardi 13 de Setembro de 2009 08:39  

Comentei, ainda que de maneira muito metafórica, este tema em um post chamado 'A máscara e o cético' no meu blog. O que penso é que não haja necessidade de um sentido objetivo, não existem locais para se chegar ('verdades transcendentais') com caminhos demarcados (o 'bem' ou o 'mal). A vida não ter sentido objetivo não significa que não faça diferença agir 'certo' ou agir 'errado', mas apenas que não há diferença objetiva. A diferença que importa é a subjetiva (a única que há em última instância). 'Mas Hitler não se sentia culpado'. Não temos como ter certeza disto, mas mesmo supondo que seja o caso, é exatamente o fato de a maioria das pessoas acharem errado não se sentir culpado ao fazer o que Hitler fez que faz com que se condene os atos dele. Os atos dele são condenáveis sem a necessidade de um tribunal transcendental.

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