sexta-feira, 4 de julho de 2008

Como crianças...

Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas” (Mt 19:14)

A passagem bíblica acima (juntamente com outros versos interpretados fora de contexto) tem sido usada com bastante freqüência entre os evangélicos. Bem, não é a primeira vez que usam deste artifício, porém decidi escrever um pouco sobre as interpretações decorrentes de uma má análise do verso acima, em particular.

Cristo disse que devemos ser como as crianças, tal que, de nenhuma outra forma, alcançaremos o Reino dos céus. É uma passagem muito bonita, sem dúvida.

O que não é nada bonito é a interpretação que os cristãos fazem dessa passagem. Os cristãos hoje em dia (mais especificamente os evangélicos) limitam-se a analisar esta passagem sob o seguinte prisma: as crianças são inocentes e dependentes do pai, logo, assim devemos ser, pois seremos totalmente dependentes do Pai e assim alcançaremos o Reino dos céus. A priori eles não estão errados em sua análise, mas erram ao encerrar a questão logo aí.

Uma criança é um ser vivo em formação. É um ser que pensa, sofre, ama, tem desejos, anseios, necessidades e características particulares. Não é um simples robô com duas programações: ser inocente e ser dependente. Uma criança possui várias características além da inocência e da dependência. Vamos refletir sobre algumas delas a seguir.


Inocência e dependência


Para começar, podemos dizer que ambos os aspectos (inocência e dependência) são naturais a uma criança recém nascida:

- Inocência natural: toda criança nasce inocente, sem conhecimento do que ocorre ou seu redor. Um recém nascido não sabe o que é Inflação, Aquecimento Global ou Oxigênio, apesar de tudo isso influenciar sua existência.

- Dependência natural: toda criança nasce totalmente dependente dos pais. Ela precisa dos pais nos primeiros meses para se alimentar através do leite materno, precisa que eles limpem o cocô que ela faz na fralda, que eles a vistam, a transportem, etc.

Não é nada anormal um bebê ser totalmente inocente e dependente dos pais. Anormal seria ver um bebê ir ao banheiro sozinho e que nas horas vagas goste de ler livros de Fiódor Dostoiévski. A total dependência e a total inocência, portanto, são características naturais das crianças. Mas, a criança fica totalmente dependente e totalmente inocente para sempre?

É aceito por todos que uma criança normal deixa de ser criança e entra na adolescência por volta dos 12 anos de idade. Será que é normal uma criança ficar durante 12 anos necessitando que a mãe limpe seu cocô? É normal uma criança de 12 anos cuja inocência seja tão grande que ela não consiga distinguir sons, cores ou formas básicas?

A resposta sincera para estas questões é “não”. Não é normal, não é aconselhável e nenhum pai deseja ver seus filhos assim. Será que uma mãe sentiria feliz em ver seu filho, aos 35 anos de idade gritando no banheiro: “Mãe! Vem me limpar!”?

Uma criança com uma semana de vida que não sabe que por o dedo na tomada dá choque é uma criança normal que é inocente por natureza. Já uma criança de 12 anos que põe o dedo na tomada todos os dias para ver o que acontece não é normal, não é saudável. Ela está ou é doente.

Da mesma forma, uma criança de 12 anos que pede sua mãe para limpá-la todos os dias após fazer seu cocô não é normal, não é saudável. Ela está ou é doente.

Podemos concluir então que existem aspectos diferentes de inocência e, da mesma forma, aspectos diferentes de dependência. Existem a inocência e a dependência naturais à criança, mas também existem a inocência e a dependência anormais.


Crescimento e desenvolvimento das crianças


Ora, ao falarmos sobre crianças devemos ter em mente que as crianças estão sempre crescendo e evoluindo em todos os aspectos da vida. Algumas crianças são mais lentas, outras mais rápidas, mas todas crescem e se desenvolvem.

Quando eu tinha cerca de 5 anos, tinha o (mau) hábito de comer a parte de cima dos lápis. Meu pai, para me corrigir, colocou pimenta nesta parte dos lápis de forma que, quando colocava o lápis na boca, minha boca ficava ardendo por uns 30 minutos. Resultado: em poucos dias abandonei o hábito. Toda vez que, mesmo de forma inconsciente, eu ia colocar o lápis na boca, meu cérebro me alertava para a dor que meus lábios passaram anteriormente e eu então não o colocava.

A cada lição ou uma tarefa aprendida, a criança passa a ser menos dependente e menos inocente em relação aos pais. Lembra do exemplo da tomada de energia? Basta o primeiro choque para que a criança nunca mais coloque o dedo lá. Ela deixará de ser inocente quanto à tomada e também deixará de ser dependente dos pais (neste sentido) que não precisarão mais dizer a ela que não pode colocar dedos em tomadas.

Uma das características fortes (e importantíssima) da criança é que ela está sempre em processo de crescimento e aprendizado, portanto, sempre está se tornando menos inocente e menos dependente dos pais.

Esse processo de desenvolvimento das capacidades da criança é importante e necessário. Como já vimos, o que é anormal é uma pessoa continuar ao longo da vida totalmente inocente e totalmente dependente dos pais.


Outros Aspectos das Crianças


Antes de concluirmos sobre as características das crianças, podemos citar alguns outros aspectos importantes relacionados a elas.

As crianças têm sede de aprender, são bastante curiosas. Quando bebês, por exemplo, se encantam com o barulho de um molho de chaves, com o ascender e apagar do interruptor, com os passarinhos, cães, músicas, enfim, com tudo o que seja novo e diferente do que elas estão acostumadas a ver, ouvir, tocar e sentir. Outra característica relacionada à curiosidade da criança é que elas não têm medo de aprender, elas fazem perguntas o tempo todo e falam como matracas.

As crianças não se preocupam com o tempo. Elas são capazes de permanecer por horas empinando pipas, pulando na terra, assistindo um peão rodar ou, contextualizando para nosso dia a dia globalizado, conseguem ficar horas e horas jogando vídeo game sem cansar e sem se preocupar com o tempo.

As crianças são sinceras em seu ciclo social. Quando são amigos, são amigos. Quando “estão de mal”, “estão de mal”. O humor das crianças é inegociável.

As crianças são criativas. Gostam de inventar personagens, heróis ou simplesmente imitar os pais, fazer cabaninhas com cobertores na sala, etc.


Semelhantes como as crianças


Vamos agora analisar o versículo. A Bíblia diz que possuem o Reino dos céus apenas aqueles que são semelhantes às crianças. Mas, antes de prosseguir, temos que deixar duas coisas bem definidas:

- Se Deus quer que sejamos como crianças em nossa relação para com Ele, logo, é razoável aceitar que Ele quer se relacionar conosco como um Pai. Aliás, Deus é chamado de Pai na Bíblia em várias passagens e também nós O chamamos assim em nossas orações.

- Nós seres humanos JÀ somos totalmente inocentes e dependentes de Deus em relação a qualquer coisa. Não temos poder de escolher ser ou não inocentes, nós somos. Nós não temos nem a capacidade de compreender o Universo em que vivemos que dirá então compreender ou ser independente de Deus.

Prosseguindo: Deus quer que sejamos como crianças, mas, será que Deus quer que nós desejemos ser inocentes e dependentes?

Absolutamente não. Este é o ponto em questão. É diferente “ser inocente” e “desejar ser inocente”, é diferente “ser dependente” e “desejar ser dependente”. Como vimos anteriormente, as crianças são inocentes, mas a natureza delas as impulsiona ao conhecimento e à independência. E é isso que seus pais desejam.

Se Deus quer se relacionar conosco como um pai se relaciona com o filho e se um pai sempre deseja ver o filho crescendo, aprendendo e desenvolvendo, logo Deus quer que seus filhos cresçam, aprendam, se desenvolvam e deixem de ser, progressivamente, dependentes dEle no que podemos ser.

O “ser semelhante às crianças” significa reconhecer que somos crianças e, por isso, ser como crianças: temos que crescer e desenvolver. Crianças normais e saudáveis crescem e desenvolvem. Este é o curso natural da existência.

Como Pai, Deus quer sejamos semelhantes às crianças. Ele quer que cresçamos e nos desenvolvamos, como crianças normais e saudáveis. Não o contrário.

Deus quer, por exemplo, que nós aprendamos a tomar decisões coerentes e prudentes, que aprendamos a ser sábios. Deus não quer que sejamos eternos inocentes em relação ao nosso conhecimento sobre Ele, tanto que somos aconselhados pela Bíblia a conhecer e prosseguir conhecendo ao Senhor, a renovar nossa mente (Rm 12:2), a buscar a sabedoria como bem mais precioso que o Ouro (Pv 2:9), etc.

O problema principal da interpretação dos evangélicos (limitada apenas ao “ser inocente e dependente”) é que esta interpretação dá margem para o comodismo voluntário para as pessoas. Este ano, enquanto lecionava uma disciplina para meus alunos na Igreja, um deles disse: "Mas isso é racional demais! Não podemos racionalizar as coisas... Crente tem que viver na dependência, no sobrenatural!".

Deus, como Pai, quer ver seus filhos crescendo, adquirido conhecimento, sabedoria e se tornando, naquilo que formos capazes, independentes e maduros. Deus quer que sejamos semelhantes às crianças, mas como crianças normais, que crescem. Não como crianças que aos 12 anos necessitam da mãe para “se limpar”.


Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

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