Sentido Protestante?
Duas semanas atrás eu ouvi uma conversa interessante entre duas colegas de trabalho que se sentam próximas a mim. Como comemoramos hoje (31 de Outubro de 2009) 492 anos de reforma protestante, decidi escrever um texto usando como base este diálogo que eu ouvi. Vamos ao diálogo (por motivos óbvios os nomes abaixo são fictícios):
– Clara! Olha só (mostra a ela um ingresso para um show do Hillsong United).
– Paloma! Você é doida? Este show não vai ser lá em São Paulo?
– Sim... mas United é a banda da minha vida! Nossa, fala que se não fosse um show de uma banda que você ama muito você não iria?
– Talvez. Mas quem são esses caras? Eles são bons?
– Nooooooossa! Demais!
[diálogo infrutífero sobre o quão boas são as músicas do Hillsong United]
– Nossa Clara, e sabe o que é mais legal? Eles são cristãos!
– Ora, mas eu também sou cristã. Sou católica.
– Não... tipo assim... cristãos no sentido “protestante” do termo.
– Humm
Após ouvir este deplorável diálogo, me perguntei: o que vem a ser este “sentido protestante” do termo “cristão"? Talvez você, evangélico, não esteja acostumado com o termo, afinal, os evangélicos atualmente detestam ser denominados por ele. Até mesmo o termo “crente” não é usado mais pelos evangélicos, que buscam se afastar de qualquer conotação forte que estes termos trazem.
Mas a história deste termo “protestante” é muito bonita e deveria ser lembrada com orgulho pelos evangélicos! Completam-se hoje 492 anos desde que tudo começou. Para você que não conhece a história, abaixo vai um resumo:
No ano de 1516 um frade da ordem agostiniana chamado Martinho Lutero começou a se indignar com o quadro de hipocrisia e falsidade da liderança da Igreja na época. O estopim para a culminação da Reforma Protestante da Igreja foi a venda das indulgencias. Visando arrecadar mais dinheiro dos fiéis, a Igreja começou a vender cartas de salvação para quem quisesse comprar. As pessoas poderiam comprar cartas de indulgências para si mesmas, ou para seus parentes já mortos, que estavam sofrendo penitências no purgatório.
Após um ano de pregações contra as indulgências, na noite de 31 de Outubro de 1517, Lutero pregou na porta da igreja do Castelo em Wittenberg uma carta contendo 95 teses sobre a Igreja e a cobrança de indulgências.
As teses eram confrontadores e extremamente desconcertantes à liderança da Igreja na época. Alguns exemplos: “doar aos pobres ou emprestar ao necessitado é melhor que comprar indulgências” (tese 43) e “por que o Papa não esvazia o purgatório por santo amor ao invés de o fazer por meio do miserável dinheiro?” (tese 82).
O povo leu estas teses e as vendas de indulgências romanas caíram drasticamente. Após uma série de eventos, Lutero e sua Teologia foram censurados e condenados pela Igreja Romana em um evento chamado “Dieta de Worms”. Vários camponeses locais protestaram em relação às decisões da dieta, e começaram a partir dali a praticar sua religiosidade à parte da Igreja Romana. Tais pessoas foram chamadas de forma pejorativa de “os protestantes”. Foi deste grupo que vieram todos os grupos de evangélicos. Todos os evangélicos deveriam ser, portanto, a rigor do termo, “protestantes”.
Foi por esta razão que minha amiga Paloma disse que os integrantes do grupo Hillsong United eram cristãos no “sentido protestante do termo”.
Mas, aproveitando o diálogo exposto e o aniversário da Reforma de Lutero, pergunto: acaso os evangélicos são, de fato, protestantes?
Não! Não são mais. Simplesmente não se é livre dentro de uma igreja evangélica para discordar ou fazer uma auto-crítica da igreja. Você não é livre para dizer “não concordo!” quando o pastor pergunta “amém?”. Se você ousar dizer isto, você não será livre para expor suas razões e será abafado pela voz de quem está com o microfone. Digo por experiência própria que isto é totalmente verdadeiro. Já passei por várias experiências assim.
Da mesma forma que a Igreja Romana não permitia que nenhum de seus frades fizessem auto-críticas (como Lutero fez), a Igreja Evangélica não permite que seus membros façam auto-críticas. Aliás, as semelhanças entre a Igreja Evangélica atual e a Igreja Romana do século XVI são maiores ainda! Qualquer pessoa com bom senso percebe que a ganância evangélica por dinheiro é a mesma da Igreja Romana da época de Lutero. Antigamente vendia-se salvação, hoje se vende prosperidade. Da mesma forma, no passado a palavra do Papa era infalível e inerrante, hoje os mesmos status são atribuídos ao o que o pastor fala em púlpito. Antigamente a Igreja Romana promovia encenações nas praças sobre o julgamento final e o inferno para assustar as pessoas e forçá-las a comprar indulgências, hoje promove-se shows evangélicos e cruzadas proféticas com o mesmo interesse de arrecadar “doações para o ministério” e as imagens do inferno continuam sendo presentes nos cultos evangélicos (as vezes costuma-se falar mais do inferno e do diabo nos cultos do que sobre Jesus e o paraíso).
Lembrando da coragem de Lutero e de como surgiu o movimento evangélico (contexto de auto-crítica) percebo que os evangélicos deixaram de ser protestantes a muito tempo. O “sentido protestante do termo” não cabe mais aos evangélicos, pois aos mesmos não é garantida a liberdade de poder protestar contra seus líderes que praticam e ensinam o que não é correto.
Em seu livro "Dogmatismo e Tolerância" (Loyola, 2004), Rubem Alvez conta uma história de sua infância sobre quando ele se sentiu protestante pela primeira vez. É interessante, vejam:
Tenho orgulho de dizer que sou protestante. “Evangélico não! Protestante” diz o título de uma comunidade no Orkut. Sinto algo mais ou menos assim. Sei que muitos olham para mim com aversão, outros com pena. Mas com Lutero também foi desta forma, portanto, nós (“os críticos recalcados e invejosos que não fazem nada”, como nos chamou Silas Malafaia) estamos no caminho certo: o caminho do protesto, o caminho da contra-mão, o caminho do Evangelho!
Parabéns Reforma! Parabéns protestantes!
Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

DESCONSTRUINDO por Eliel Vieira está licenciado sob Creative Commons Attribution.
– Clara! Olha só (mostra a ela um ingresso para um show do Hillsong United).
– Paloma! Você é doida? Este show não vai ser lá em São Paulo?
– Sim... mas United é a banda da minha vida! Nossa, fala que se não fosse um show de uma banda que você ama muito você não iria?
– Talvez. Mas quem são esses caras? Eles são bons?
– Nooooooossa! Demais!
[diálogo infrutífero sobre o quão boas são as músicas do Hillsong United]
– Nossa Clara, e sabe o que é mais legal? Eles são cristãos!
– Ora, mas eu também sou cristã. Sou católica.
– Não... tipo assim... cristãos no sentido “protestante” do termo.
– Humm
Após ouvir este deplorável diálogo, me perguntei: o que vem a ser este “sentido protestante” do termo “cristão"? Talvez você, evangélico, não esteja acostumado com o termo, afinal, os evangélicos atualmente detestam ser denominados por ele. Até mesmo o termo “crente” não é usado mais pelos evangélicos, que buscam se afastar de qualquer conotação forte que estes termos trazem.
Mas a história deste termo “protestante” é muito bonita e deveria ser lembrada com orgulho pelos evangélicos! Completam-se hoje 492 anos desde que tudo começou. Para você que não conhece a história, abaixo vai um resumo:
No ano de 1516 um frade da ordem agostiniana chamado Martinho Lutero começou a se indignar com o quadro de hipocrisia e falsidade da liderança da Igreja na época. O estopim para a culminação da Reforma Protestante da Igreja foi a venda das indulgencias. Visando arrecadar mais dinheiro dos fiéis, a Igreja começou a vender cartas de salvação para quem quisesse comprar. As pessoas poderiam comprar cartas de indulgências para si mesmas, ou para seus parentes já mortos, que estavam sofrendo penitências no purgatório.
Após um ano de pregações contra as indulgências, na noite de 31 de Outubro de 1517, Lutero pregou na porta da igreja do Castelo em Wittenberg uma carta contendo 95 teses sobre a Igreja e a cobrança de indulgências.
As teses eram confrontadores e extremamente desconcertantes à liderança da Igreja na época. Alguns exemplos: “doar aos pobres ou emprestar ao necessitado é melhor que comprar indulgências” (tese 43) e “por que o Papa não esvazia o purgatório por santo amor ao invés de o fazer por meio do miserável dinheiro?” (tese 82).
O povo leu estas teses e as vendas de indulgências romanas caíram drasticamente. Após uma série de eventos, Lutero e sua Teologia foram censurados e condenados pela Igreja Romana em um evento chamado “Dieta de Worms”. Vários camponeses locais protestaram em relação às decisões da dieta, e começaram a partir dali a praticar sua religiosidade à parte da Igreja Romana. Tais pessoas foram chamadas de forma pejorativa de “os protestantes”. Foi deste grupo que vieram todos os grupos de evangélicos. Todos os evangélicos deveriam ser, portanto, a rigor do termo, “protestantes”.
Foi por esta razão que minha amiga Paloma disse que os integrantes do grupo Hillsong United eram cristãos no “sentido protestante do termo”.
Mas, aproveitando o diálogo exposto e o aniversário da Reforma de Lutero, pergunto: acaso os evangélicos são, de fato, protestantes?
Não! Não são mais. Simplesmente não se é livre dentro de uma igreja evangélica para discordar ou fazer uma auto-crítica da igreja. Você não é livre para dizer “não concordo!” quando o pastor pergunta “amém?”. Se você ousar dizer isto, você não será livre para expor suas razões e será abafado pela voz de quem está com o microfone. Digo por experiência própria que isto é totalmente verdadeiro. Já passei por várias experiências assim.
Da mesma forma que a Igreja Romana não permitia que nenhum de seus frades fizessem auto-críticas (como Lutero fez), a Igreja Evangélica não permite que seus membros façam auto-críticas. Aliás, as semelhanças entre a Igreja Evangélica atual e a Igreja Romana do século XVI são maiores ainda! Qualquer pessoa com bom senso percebe que a ganância evangélica por dinheiro é a mesma da Igreja Romana da época de Lutero. Antigamente vendia-se salvação, hoje se vende prosperidade. Da mesma forma, no passado a palavra do Papa era infalível e inerrante, hoje os mesmos status são atribuídos ao o que o pastor fala em púlpito. Antigamente a Igreja Romana promovia encenações nas praças sobre o julgamento final e o inferno para assustar as pessoas e forçá-las a comprar indulgências, hoje promove-se shows evangélicos e cruzadas proféticas com o mesmo interesse de arrecadar “doações para o ministério” e as imagens do inferno continuam sendo presentes nos cultos evangélicos (as vezes costuma-se falar mais do inferno e do diabo nos cultos do que sobre Jesus e o paraíso).
Lembrando da coragem de Lutero e de como surgiu o movimento evangélico (contexto de auto-crítica) percebo que os evangélicos deixaram de ser protestantes a muito tempo. O “sentido protestante do termo” não cabe mais aos evangélicos, pois aos mesmos não é garantida a liberdade de poder protestar contra seus líderes que praticam e ensinam o que não é correto.
Em seu livro "Dogmatismo e Tolerância" (Loyola, 2004), Rubem Alvez conta uma história de sua infância sobre quando ele se sentiu protestante pela primeira vez. É interessante, vejam:
Num belo dia, sem aviso prévio, a professora entrou em classe acompanhada de um padre com batinha preta. "Quem é que vai para a confissão e a comunhão?", perguntou ele com voz taquaral clerical. A meninada toda levantou a mão. Menos eu e o Estelino, que era espírita. Todo mundo olhou espantado para a gente, enquanto o sangue subia ao rosto e os nossos olhos se enterravam no chão. Miseravelmente diferente, sem saber por que, enquanto os outros cochichavam risos contra minha singularidade. E o padre e sua batina foram crescendo, crescendo sem parar, e o menino indefeso foi sentido a dor do estigma. Eu era diferente. Nunca me esqueci.
Mas aí aconteceu uma coisa gozada, que a psicanálise deve explicar. A vergonha de ser diferente virou orgulho de ser diferente. Foi então que eu, sem saber, me senti protestante pela primeira vez. De fato, o protestantismo tem muito a ver com a coragem para assumir a própria individualidade.
Tenho orgulho de dizer que sou protestante. “Evangélico não! Protestante” diz o título de uma comunidade no Orkut. Sinto algo mais ou menos assim. Sei que muitos olham para mim com aversão, outros com pena. Mas com Lutero também foi desta forma, portanto, nós (“os críticos recalcados e invejosos que não fazem nada”, como nos chamou Silas Malafaia) estamos no caminho certo: o caminho do protesto, o caminho da contra-mão, o caminho do Evangelho!
Parabéns Reforma! Parabéns protestantes!
Eliel Vieira
eliel@elielvieira.org

DESCONSTRUINDO por Eliel Vieira está licenciado sob Creative Commons Attribution.
Continue a leitura...